Che Guevara no Brasil |
Entre os muitos episódios que marcaram a vida de Che Guevara, seu encontro com o presidente Jânio Quadros é, talvez, um dos menos conhecidos ou documentados. Os relatos de seus biógrafos são coincidentes em sua brevidade e escassez de detalhes. Ainda assim, sua visita-relâmpago ao Brasil, em 1961, foi considerada por muitos polemistas da época e jornalistas sensacionalistas de plantão, como, possivelmente, a “gota d’água” para a renúncia de Jânio, naquele mesmo ano.
O então ministro das Indústrias de Cuba acabava de partir do Uruguai, após vários dias de acalorados debates na reunião do CIES (Conselho Interamericano Econômico e Social, um órgão da OEA), em Punta del Este, onde cumprira uma agenda cheia (naquele balneário e em Montevidéu) de discursos, reuniões políticas, coquetéis e entrevistas para a imprensa estrangeira. Guevara estava exausto, mas antes de retornar a Havana, ainda tinha dois compromissos importantes: encontrar-se secretamente com o presidente Frondizi, na Argentina e em seguida, partir para o Brasil, onde seria recebido pelo primeiro mandatário do país, Jânio Quadros.
O turbo-hélice quadrimotor Bristol Britannia, da Cubana de Aviación pousou na Base Aérea de Brasília às 23:30 horas, do dia 18 de agosto de 1961. Destacado para receber o revolucionário argentino, o então deputado federal José Sarney acabou não permanecendo no local para a sua chegada, por causa dos sucessivos atrasos no vôo da delegação da ilha caribenha. Assim, a tarefa ficou a cargo do diplomata Carlos Alberto Leite Barbosa, que recepcionou o ilustre convidado e o levou imediatamente, junto com sua comitiva de 45 pessoas (vinte das quais eram seguranças), para o Brasília Palace Hotel, onde ocupariam um andar inteiro.
O Che demonstrava cansaço, especialmente porque no dia anterior sofrera um forte ataque de asma em Montevidéu. Passou parte da noite conversando em sua suíte com o então fotojornalista do jornal O Estado de S. Paulo, Raymond Frajmund, e um grupo de amigos, e depois foi descansar. Às seis horas da manhã, teria de levantar e seguir diretamente para a Praça dos Três Poderes, onde saudaria a bandeira e passaria em revista às tropas. Enquanto isso, vários oficiais da Guarda Presidencial, indignados com a presença do dirigente comunista, se rebelavam. Não queriam participar do evento programado. O clima era de tensão. Após grande esforço dos oficiais mais graduados, por toda a madrugada, a situação foi resolvida a tempo, e tudo transcorreu como planejado.
Eram sete horas da manhã quando Guevara, em seu tradicional uniforme verde-oliva, era recebido com honras militares. Mesmo aparentando certo desconforto com a cerimônia, ouviu os hinos nacionais dos dois países e bateu continência à bandeira, diante dos soldados enfileirados (os oficiais responsáveis pela tropa, por sua vez, se recusaram a se perfilar diante do Che). Dezoito minutos depois, já estava no Salão Verde do Palácio do Planalto, onde foi acolhido com entusiasmo por Jânio.
Aquela não era a primeira vez que os dois se encontravam. Jânio havia visitado Cuba no final de março e início de abril de 1960, a convite de Fidel, quando ainda era candidato à presidência. A delegação era composta, além do próprio Quadros, de sua mulher, filha e sogra, do coordenador da viagem, José Aparecido, do secretário particular, Augusto Marzagão, e de importantes escritores, jornalistas e políticos, como Fernando Sabino, Rubem Braga, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Afonso Arinos, Carlos Castello Branco, Márcio Moreira Alves, Villas-Boas Correa, Paulo de Tarso Santos, Francisco Julião, entre vários outros. Jânio varou uma noite inteira proseando com o Che em seu gabinete, ainda no Banco Nacional de Cuba.
Também se impressionou com seu interlocutor quando participava de uma recepção na Embaixada do Brasil em Havana. Enquanto Fidel, cauteloso, se esquivava de algumas perguntas, respondendo com evasivas, Guevara fez questão de declarar a Jânio, com todas as letras, que ele era “marxista-leninista”, uma franqueza que impressionou bastante o visitante. Agora era a vez do Che visitar seu colega em Brasília.
A viagem de Guevara à capital brasileira fora decidida pouco tempo antes e era basicamente de “cortesia”, com caráter protocolar. Quando o Che ia à reunião da OEA, no Uruguai, fez breve escala no aeroporto do Rio de Janeiro, onde recebeu o convite de João Dantas, em nome de Jânio (há quem diga que o convite teria partido do então ministro Clemente Mariani). O encontro serviria, supostamente, para estreitar os laços de amizade entre os dois países. E também para discutir a situação e o destino de 168 exilados cubanos, que se encontravam na residência da Embaixada brasileira em Havana. O ato mais importante e simbólico da visita, contudo, seria a condecoração do Che com a “Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul”, a mais alta comenda do governo.
Na verdade, a decisão de condecorar Guevara foi abrupta. Como o Itamaraty (e sua divisão de cerimonial) na época ainda ficava no Rio (em Brasília só havia um escalão avançado, com o gabinete do chanceler), foi necessário mandar buscar, às pressas, a medalha na antiga capital. O chefe do cerimonial, Câmara Canto (mais tarde embaixador do Brasil no Chile, durante o golpe de Pinochet), providenciou para que fosse levada a tempo a Brasília, num Caravelle da Cruzeiro do Sul. Numa cerimônia com poucas pessoas, Jânio colocou a insígnia no “comandante” e seguiu então para uma conversa reservada com ele em seu gabinete.
O gesto, aparentemente singelo, foi considerado imperdoável para alguns setores das Forças Armadas. É verdade que outros dignitários cubanos já haviam recebido aquela comenda, anos antes, como Osvaldo Dorticós e Raúl Roa. Até mesmo o cosmonauta soviético Yuri Gagarin ganhara uma condecoração, a “Ordem do Mérito Aeronáutico”. Todos estes, durante o governo de Juscelino. Mas agora, as coisas eram diferentes. A situação, desta vez, não permitia tamanha ousadia. Os militares não perdoariam Jânio por isso. Alguns deles até ameaçaram devolver suas próprias condecorações em protesto.
O clima esquentara também com o governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Algumas horas antes da chegada do Che a Brasília, Lacerda se encontrara com Jânio e ficara extremamente irritado ao saber da condecoração. Ele iria entregar as chaves do Rio de Janeiro, logo depois, ao contra-revolucionário anticastrista cubano Manuel “Tony” Varona.
Após uma reunião fechada com Jânio, Guevara conversou com jornalistas e, junto com o encarregado de negócios de Cuba e alguns membros de sua delegação, foi para um almoço com o prefeito do Distrito Federal, Paulo de Tarso, na residência oficial do Riacho Fundo. Em seguida, deu uma volta de helicóptero sobre a capital e seguiu para a Base Aérea. Seu avião decolou às 15 horas com destino a Havana.
A visita do Che durou menos de dezesseis horas, mas passou como um furacão. A condecoração de Guevara foi a última solenidade de Jânio no Palácio do Planalto. Poucos dias depois, ele renunciava. Os militares, por sua vez, depois do golpe de 1964, em outro gesto simbólico, iriam retirar aquela comenda do famoso revolucionário.
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