Obra-prima de Freud ainda assombra a contemporaneidade |
Durante décadas, o público leitor brasileiro foi obrigado a conviver com péssimas traduções dos textos de Sigmund Freud (1856-1939), um dos pensadores mais decisivos do século 20. Agora, com a disponibilização da obra freudiana para o domínio público, a Companhia das Letras oferece uma tradução segura das obras completas, feita por um tradutor que já havia mostrado sua competência com textos de Nietzsche (1844-1900) e Brecht (1898-1956), Paulo César de Souza.
O novo volume da coleção traz, além das "Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise", o fundamental "O Mal-Estar na Civilização".
Não seria exagero dizer que este é certamente um dos textos mais influentes da contemporaneidade.
Sua maneira de descrever as patologias do processo civilizatório e o preço que pagamos para socializar nossas pulsões e desejos encontrou eco profundo na maneira de compreendermos a estrutura de nossas formas de vida.
Isto demonstra que, independentemente do fato de acreditarmos ou não na psicanálise como prática clínica, boa parte dos esquemas de autocompreensão das sociedades ocidentais são profundamente marcados por uma cultura psicanalítica.
Se nos perguntarmos sobre a razão para tamanha influência, talvez a melhor resposta seria: com a noção de "mal-estar", Freud nomeou uma modalidade de sofrimento social que parece assombrar a modernidade.
SOFRIMENTO
Duas ideias aqui são importantes. Primeiro, a noção de que aquilo que chamamos de "sofrimento psíquico" está profundamente vinculado ao impacto, em nossas vidas, dos imperativos da vida social. Daí a ideia de que todo sofrimento psíquico é um modo de expor experiências sociais malogradas.
Segundo, através da análise deste mal-estar, Freud demonstrou que o verdadeiro risco da civilização ocidental não vem de fora. Na verdade, seu maior inimigo é ela mesma. Como dirá Walter Benjamin (1892-1940), profundamente inspirado por Freud: "Todo documento de civilização é um documento de barbárie".
Isto significa, entre outras coisas, que o próprio processo de formação das individualidades impõe cisões (entre, por exemplo, pulsões e vontade racional), petrifica comportamentos, cria expectativas de reparação (através da constituição de figuras fantasmáticas de autoridade) que explicam boa parte do comportamento regressivo que, periodicamente, submerge nossas sociedades.
No entanto, o ensinamento de Freud nunca foi abandonar a civilização em prol de alguma moral naturalista.
Ele nos ensinou, na verdade, a tentar manejar uma dialética complicada onde o que é perdido inicialmente pelo processo civilizatório deve ser posteriormente reintegrado em um novo patamar. Isto impõe uma desconfiança prudente a respeito de nossos próprios valores, uma necessidade de fazer coisas que sabemos que, posteriormente, deverão ser feitas de outra forma.
Assim, Freud será sempre aquele que nos lembrou que nosso "mal-estar" diante da civilização é talvez nosso sentimento mais verdadeiro.
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