sábado, junho 29, 2013

As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo


As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo
Marilena Chaui
Observações preliminares
O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.
O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação especifica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a redução da tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano
Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que  voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.
Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
- explosão do uso do automóvel individual: a mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;
- explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável além de não contar com uma redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;
- aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Hermínia Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população); em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade;
- o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero.  No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; além da insuficiência quantitativa para atender a demanda, há atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que também são de responsabilidade do governo estadual. No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto, feitos para transportar coisas e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas inter-bairros, de maneira que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores;
Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.

2. As manifestações paulistanas

A tradição de lutas
Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição doquebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.
Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos: 1. introdução da idéia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais; 2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade; 3. introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu: 1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta; 2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais; 3. surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares,  tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico
A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração  desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da midia:
  1. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;
  2. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois com o fato das manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
  3. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a idéia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;
  4. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto,  indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento  assume a aparência de que o  universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem. Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados, e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a violência que condenaram na polícia,
A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:
a)    no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
b)    no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência,  a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;
c)    a crítica ao PT:  de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos 20 anos).
Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuímos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática. Assim, sob este aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência. Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas  capitalistas movidas por interesses privados. Dessa maneira,  a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética. De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas. A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção. Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.
Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura) ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.
Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.
Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensangüentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL. Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.
Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo). Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do poder legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicaram uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.
Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?
Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.
Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:
  1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem não se relacionam  pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
  2.  estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
  3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?
  4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?
Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela Prefeitura e que ela não faria o subsídio implicar em cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio juntamente com outros recursos da Prefeitura. Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público, e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU. Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas  manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei. A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela. Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.   Marilena Chaui

segunda-feira, junho 24, 2013

Movimento Passe Livre (MPL) e mais um pouco: anseios de uma sociedade que quer mais!?

Analisar o Movimento Passe Livre (MPL) e as últimas manifestações, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, BH, DF, João Pessoa e outras cidades no Brasil, se trata de um assunto extremamente delicado e complexo, tendo em vista a forma e essência dos atos, principalmente estes com vários fatos e acontecimentos de uma velocidade e dinâmica que impedem uma análise mais precisa, desde já, informo que essa análise está longe de se esgotar neste artigo.

Nas cidades supracitadas entre outras, ocorreram diversas manifestações pela redução da tarifa do transporte público coletivo. Os protestos foram marcados pelo protagonismo da juventude, porém esse não foi o único fator em comum e a repressão da Polícia Militar (sob comando dos governos estaduais). Vale destacar também a grande importância da ferramenta do facebook na mobilização.

Os protestos cada vez mais aumentam de proporção, estes levaram mais de 200 mil pessoas às ruas em várias cidades no dia 17 de junho, e continuam lotando as ruas com milhares de manifestantes, algo que não se via com tantas proporções nos últimos tempos. Se trata de um momento inédito, um verdadeiro “fenômeno” cheio de contradições e peculiaridades.

O aumento de proporção do movimento, em seu início, foi acompanhada pela repressão policial. As imagens assustam e confirmam a razão de termos a polícia mais violenta do mundo. Autoritarismo, truculência, descontrole e a brutalidade são visíveis nas imagens/vídeos, depoimentos, e pior, nas marcas das vítimas. Vale ressaltar, que essa é a realidade cotidiana de muitas periferias.

A posição da mídia deu um giro enorme. Esta que se colocava contra os protestos e “vandalismos” teve que recuar. Os protestos foram até destaque no The New York Times e outros meios da imprensa internacional. A mídia mudou completamente a cobertura, inclusive divulgando e lucrando com isso, apesar das contradições, a mesma “aplaude” os protestos pacifistas e condena a “minoria radical”. E isso, se tratando do PIG (Partido da Imprensa Golpista), nunca será atoa.

A manifestação que começou tímida, se trata de um verdadeiro “fenômeno”, pois ampliou sua pauta muito além do Passe Livre. Como muitos fazem questão de afirmar, “a luta não é por 20 centavos, é por direitos”. Vale ressaltar, que o aumento das tarifas e manifestações do tipo não são novidades na história, porém essa teve algo peculiar e de proporções que ninguém esperava. Não se tem hoje, como prever os rumos e consequências a longo prazo, nem tão pouco a curto e médio com precisão.

O movimento tem como maior sentimento o de descontentamento e insatisfação da sociedade, porém de maneira muito difusa e “espontânea”. As manifestações ganham um caráter genérico e sem uma pauta clara, se trata de um movimento que questiona o atual modelo de Estado (inclui ai instituições, representações, políticas e serviços públicos) e que não vê nos modelos clássicos de organização a sua representatividade. Existe por uma maioria a negação da Política (e nisso entra os governos, partidos, entidades etc), pois, segundo alguns manifestantes, o protesto não é “política”, é “luta por direitos”.

Do ponto de vista político, os atos ganharam proporções inimagináveis. Pode se dizer hoje, que de certa forma, “perdeu-se o controle”, afinal, é difícil e tenso coordenar e acompanhar de maneira totalmente organizada um protesto com mais de 200 mil pessoas. Vale destacar que a maioria dos participantes não possuem experiência com esses métodos de luta social.

É forte também o discurso anti-partidário e aversão a qualquer forma de organização/entidade social. Nas manifestações em todo o Brasil, os partidos são vaiados, com suas bandeiras rasgadas, agredidos e constrangidos pelos “manifestantes independentes” que gritam “sem partido, sempartido”, o mesmo acontece com os movimentos históricos e entidades de luta no Brasil, como CUT, MST e outras. Vale o registro que na ditadura civil-militar também eram proibidos partidos, e o discurso apartidário é reforçado pela a mídia brasileira (só para reflexão).

Os movimentos que iniciaram com as pautas históricas do campo da esquerda foi disputado nas ruas. Hoje, as mais diversas bandeiras tomam contas dos protestos, desde questões como o próprio passe livre, contra o cura gay, e contra o estatuto do nascituro, assim como “pelo preço justo do Play Station 4”, contra a PEC 37 e pela redução da maioridade penal.

Hoje, não podemos cair na dicotomia maniqueísta de afirmar que o movimento virou fascista e de ultra-neoliberal, ou mesmo que se trata de um movimento da esquerda clássica. Não é nenhum, nem o outro. O movimento é muito mais complexo, contraditório e multifacetado do que essas simples afirmações.

De modo geral, as manifestações tem ganhado um caráter patriota/nacionalista e pacifista (que é diferente de pacífico). As pessoas vão de branco, com a bandeira do Brasil e cantam o hino nacional durante o percurso. Algumas cidades, a manifestação terminou em oração coletiva na praia. Na maioria, teve-se uma verdadeira criminalização da pobreza, onde os estereótipos de quem era da “periferia” e fazia qualquer movimento que fugisse do padrão era vaiado e denunciado através da “palavra de ordem” “sem vandalismo, sem vandalismo”. A PM cabia prender e sabe-se lá mais o que em atendimento aos “manifestantes pacíficos”.

A mídia enfoca o caráter pacifista, principalmente para mostrar que existe uma “dicotomia” no movimento, já que a minoria que não canta hino e não vai de branco são os “vândalos”, “oportunistas” e “marginais” que não tem como evitar, isso segundo a Rede Globo (que quebrou sua grade para mostrar todos os protestos no dia 20/06).

Uma coisa é fato, o protesto/manifestação/ato corre o risco de ser capitalizado pelo senso-comum, pela direita e setores bem conservadores do país e se tornarem possivelmente em “Marchas pela Família”, como na época da ditadura. Isso não significa, porém, que irá acontecer, mas é uma possibilidade. Como o contrário pode ser totalmente verdadeiro, só a luta cotidiana e decorrer do processo poderá definir. Por enquanto, nada está dado.

Não terá como aprofundar a análise de metodologia e de coordenação do movimento, mas sobre isso se trata de um exercício político para a militância, principalmente de esquerda. Um exercício de buscar unidade política dos partidos, entidades e organizações da esquerda, de construir atos onde os protagonistas sejam o povo e suas bandeiras históricas. A esquerda precisa se unir e pautar projetos dos trabalhadores, como mais investimento na saúde, educação, reforma política e outras pautas. Isso precisa ser feito de maneira clara e precisa, para obter conquistas e assim, poder avançar nas lutas.

O PT através de suas mais variadas instâncias (Direções Nacional, Estaduais, Municipais, Juventude e forças políticas) lançaram nota de apoio as manifestações e se solidarizaram com a luta e os protestos no país. Porém, se trata ainda de um verdadeiro tensionamento interno. Afinal, as manifestações representam insatisfação (seja de esquerda, direita ou senso-comum) e coloca para o partido e governo a necessidade de fazer autocrítica do que não fizemos, avançar nas pautas já conquistas e sair do imobilismo. O PT, mais do que qualquer partido, precisa se fazer presente nas ruas, disputar as pautas, unificar a esquerda e avançar através dos governos.

O pronunciamento da Presidenta Dilma aponta a sensibilidade do governo com os anseios das manifestações, elogiando a democracia que conquistamos através de luta contra a ditadura. No dia 21 de junho, Dilma falou para todo o Brasil que o governo quer muito mais do que tem hoje, ela tensinou o Congresso Nacional para a votação em prol dos 100% dos royalties do pré-sal para a Educação, falou da necessidade da Reforma Política nos três poderes, que o movimento é legítimo e que se tiver uma pauta clara o Governo está aberto para o diálogo com os representantes, falou também do Plano Nacional de Mobilidade Urbana e da vinda dos médicos estrangeiros como avanço para a política de saúde.
Precisamos ir além, precisamos desengavetar e chamar toda a base para pautar Reforma Política no Brasil de maneira forte e determinada, não podemos adiar mais a Democratização dos Meios de Comunicação e outras pautas históricas do PT e da esquerda, como: reforma agrária, reforma urbana, primazia das políticas públicas em detrimento do mercado etc.

No que se refere a luta por um transporte público de qualidade e efetivo, é importante pautar que as empresas de ônibus se tratam do verdadeiro inimigo, tanto do povo como de governos progressistas. Para garantir seus lucros desmedidos, as empresas são medem esforços, seja na perseguição de militantes, ou mesmo financiando campanhas eleitorais para garantir seus lobbies. Exemplo claro disso, é que as empresas arcam minimamente sobre a tarifa, sendo a maior oneração para os governos, e principalmente para a população.

O Movimento Passe Livre (MPL), com todo o apoio da esquerda, deve agora construir unidade em torno de um projeto que ultrapasse o “contra o aumento e pela redução das tarifas”, precisamos ir as ruas exigir um novo modelo de política pública de mobilidade urbana, exigir transparência e auditoria das planilhas superfaturadas das empresas e que obscurecem o lucro real, denunciar os monopólios, as concessões irregulares, exigir transparência e mais controle social nas decisões que envolvam a política.

Outro ponto que podemos avançar, é com o Passe Livre Cultural, que se trata da meia-passagem nos finais de semana e feriados para todos os usuários de transporte, gerando assim mais acesso a cultura, ao lazer e a cidade por parte da classe trabalhadora. Essa já realidade em alguns municípios, e que devem servir de exemplo na democratização do acesso ao território.

O Passe Livre já realidade em algumas cidades no Brasil. Aqui destaco a experiência em João Pessoa/PB, recém lançada pelo governo municipal, onde o PT encabeça através do Prefeito Luciano Cartaxo. Apesar das limitações e restrições e apenas para estudantes da rede municipal (o que não dará também para um maior aprofundamento neste artigo), o passe livre em João Pessoa representa avanços e possíveis caminhos a serem trilhados pelas gestões.

As movimentações já conquistaram vitórias nesse sentido. Em várias cidades a tarifa já foi reduzida, como em São Paulo, João Pessoa, Cuiabá, e outras cidades. Porém, em sua maioria o lucro dos empresário continua intocável, e aí está a ferida para ser mexida: precisamos onerar as empresas sobre o preço da tarifa, e não a população ou os governos.

O Passe Livre se trata de um direito necessário para democratizar o acesso e a livre circulação nas cidades. O PL para estudantes e juventudes é deliberação da 2º Conferência Nacional de Juventude, essa é a nossa meta, a nossa estratégia. Atrair a sociedade para essa pauta é fundamental, significa a conquista de um direito fundamental, o de ir e vir, e dizer aos empresários que não se lucra com esse e tantos direitos.

As lutas sociais, e principalmente suas conquistas são pedagógicas e importantes, mostram para a sociedade que através da luta social podemos ter ganhos concretos, e se isso vale para a tarifa, vale para outras pautas históricas. Os últimos movimentos, além disso, mostram para a esquerda a necessidade de se reciclar? De ter novos métodos? De não subestimar o “senso-comum”? De “voltar” as massas? Questionamentos que se forem respondidos agora, talvez seja equivocado, mas, alerta no sentido de mudança, e sempre, de saída pela esquerda.

Nosso papel, militantes dos movimentos sociais, partidos, entidades e mais diversos segmentos é de participar e construir essas manifestações. Disputar nas ruas, como sempre fizemos. Não podemos afirmar que a batalhar está perdida, não podemos nos ausentar. É afirmar que o gigante nunca esteve adormecido, sempre as lutas foram pautadas e enfrentadas nesse país, mesmo no descendo de lutas de massas. O Brasil nunca dormiu. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Um salve a democracia e a participação popular.

Shellen Galdino
Estudante de Serviço Social da UFPB.
Militante da Articulação de Esquerda, tendência interna do PT.

A direita também disputa ruas e urnas


Por Valter Pomar*

Quem militou ou estudou os acontecimentos anteriores ao golpe de 1964 sabe muito bem que a direita é capaz de combinar todas as formas de luta. Conhece, também, a diferença entre “organizações sociais” e “movimentos sociais”, sendo que os movimentos muitas vezes podem ser explosivos e espontâneos.

Já a geração que cresceu com o Partido dos Trabalhadores acostumou-se a outra situação. Nos anos 1980 e 1990, a esquerda ganhava nas ruas, enquanto a direita vencia nas urnas. E a partir de 2002, a esquerda passou a ganhar nas urnas, chegando muitas vezes a deixar as ruas para a oposição de esquerda.

A direita, no dizer de alguns, estaria “sem programa”, “sem rumo”, controlando “apenas”  o PIG, que já não seria mais capaz de controlar a “opinião pública”, apenas a “opinião publicada”.

Era como se tivéssemos todo o tempo do mundo para resolver os problemas que vinham se acumulando: alterações geracionais e sociológicas, crescimento do conservadorismo ideológico, crescente perda de vínculos entre a esquerda e as massas, ampliação do descontentamento com ações (e com falta de ações) por parte dos nossos governos, decaimento do PT à vala comum dos partidos tradicionais etc.

Apesar destes problemas, o discurso dominante na esquerda brasileira era, até ontem, de dois tipos.

Por um lado, no petismo e aliados, o contentamento com nossas realizações passadas e presentes, acompanhada do reconhecimento mais ou menos ritual de que “precisamos mais” e de que “precisamos mudar práticas”.

Por outro lado, na esquerda oposicionista (PSOL, PSTU e outros), a crítica aos limites do petismo, acompanhada da crença de que através da luta política e social, seria possível derrotar o PT e, no lugar, colocar uma “esquerda mais de esquerda”.

As manifestações populares ocorridas nos últimos dias, especialmente as de ontem, atropelaram estas e outras interpretações.

Primeiro, reafirmaram que os movimentos sociais existem, mas que eles podem ser espontâneos. E que alguns autoproclamados “movimentos sociais”, assim como muitos partidos “populares”,  não conseguem reunir, nem tampouco dirigir, uma mínima fração das centenas de milhares de pessoas dispostas a sair ás ruas, para manifestar-se.

Em segundo lugar, mostraram que a direita sabe disputar as ruas, como parte de uma estratégia que hoje ainda pretende nos derrotar nas urnas. Mas que sempre pode evoluir em outras direções.

Frente a esta nova situação, qual deve ser a atitude do conjunto da esquerda brasileira, especialmente a nossa, que somos do Partido dos Trabalhadores?

Em primeiro lugar, não confundir focinho de porco com tomada. As manifestações das últimas semanas não são “de direita” ou "fascistas". Se isto fosse verdade, estaríamos realmente em péssimos lençóis.

As manifestações (ainda) são expressão de uma insatisfação social difusa e profunda, especialmente da juventude urbana. Não são predominantemente manifestações da chamada classe média conservadora, tampouco são manifestações da classe trabalhadora clássica.

A forma das manifestações corresponde a esta base social e geracional: são como um mural do facebook, onde cada qual posta o que quer. E tem todos os limites políticos e organizativos de uma geração que cresceu num momento "estranho" da história do Brasil, em que a classe dominante continua hegemonizando a sociedade, enquanto a esquerda aparentemente hegemoniza a política.

A insatisfação expressa pelas manifestações tem dois focos: as políticas públicas e o sistema político.

As políticas públicas demandadas coincidem com o programa histórico do PT e da esquerda. E a crítica ao sistema político dialoga com os motivos pelos quais defendemos a reforma política.

Por isto, muita gente no PT e na esquerda acreditava que seria fácil aproximar-se, participar e disputar a manifestação. Alguns, até, sonhavam em dirigir.

Acontece que, por sermos o principal partido do país, por conta da ação do consórcio direita/mídia, pelos erros politicos acumulados ao longo dos últimos dez anos, o PT se converteu para muitos em símbolo principal do sistema político condenado pelas manifestações.

Esta condição foi reforçada, nos últimos dias, pela atitude desastrosa de duas lideranças do PT: o ministro da Justiça, Cardozo, que ofereceu a ajuda de tropas federais para o governador tucano “lidar” com as manifestações; e o prefeito Haddad, que nem na entrada nem na saída teve o bom senso de diferenciar-se do governador.

O foco no PT, aliado ao caráter progressista das demandas por políticas públicas, fez com que parte da oposição de esquerda acreditasse que seria possível cavalgar as manifestações. Ledo engano.

Como vimos, a rejeição ao PT se estendeu ao conjunto dos partidos e organizações da esquerda político-social. Mostrando a ilusão dos que pensam que, através da luta social (ou da disputa eleitoral) seriam capazes de derrotar o PT e colocar algo mais à esquerda no lugar.

A verdade é que ou o PT se recicla, gira à esquerda, aprofunda as mudanças no país; ou toda a esquerda será atraída ao fundo. E isto inclui os que saíram do PT, e também os que nos últimos anos flertaram abertamente com o discurso anti-partido e com certo nacionalismo. Vale lembrar que a tentativa de impedir a presença de bandeiras partidárias em mobilizações sociais não começou agora.

O rechaço ao sistema político, à corrupção, aos partidos em geral e ao PT em particular não significa, entretanto, que as manifestações sejam da direita. Significa algo ao mesmo tempo melhor e pior: o senso comum saiu às ruas. O que inclui certo uso que vem sendo dado nas manifestações aos símbolos nacionais.

Este senso comum, construído ao longo dos últimos anos, em parte por omissão e em parte por ação nossa, abre enorme espaço para a direita. Mas, ao mesmo tempo, à medida que este senso comum participa abertamente da disputa política, criam-se condições melhores para que possamos disputá-lo.

Hoje, o consórcio direita/mídia está ganhando a disputa pelo pauta das manifestações. Além disso, há uma operação articulada de participação da direita, seja através da presença de manifestantes, seja através da difusão de determinadas palavras de ordem, seja através da ação de grupos paramilitares.

Mas a direita tem dificuldades para ser consequente nesta disputa. O sistema político brasileiro é controlado pela direita, não pela esquerda. E as bandeiras sociais que aparecem nas manifestações exigem, pelo menos, uma grande reforma tributária, além de menos dinheiro público para banqueiros e grandes empresários.

É por isto que a direita tem pressa em mudar a pauta das manifestações, em direção a Dilma e ao PT. O problema é que esta politização de direita pode esvaziar o caráter espontâneo e a legitimidade do movimento; além de produzir um efeito convocatória sobre as bases sociais do lulismo, do petismo e da esquerda brasileira.

Por isto, é fundamental que o PT e o conjunto da esquerda disputem o espaço das ruas, e disputem corações e mentes dos manifestantes e dos setores sociais por eles representados. Não podemos abandonar as ruas, não podemos deixar de disputar estes setores.

Para vencer esta disputa teremos que combinar ação de governo, ação militante na rua, comunicação de massas e reconstruir a unidade da esquerda.

A premissa, claro, é que nossos governos adotem medidas imediatas que respondam às demandas reais por mais e melhores políticas públicas. Sem isto, não teremos a menor chance de vencer.

Não basta dizer o que já fizemos. É preciso dar conta do que falta fazer. E, principalmente, explicar didaticamente, politicamente, as ações do governo. Marcando a diferença programática, simbólica, política, entre a ação de governo de nosso partido e os demais.

O anúncio conjunto (Alckmin/Haddad) de redução da tarifa e a oferta da força pública feita por Cardozo a Alckmin são exemplos do que não pode se repetir. Para não falar das atitudes conservadoras contra os povos indígenas, da atitude complacente com setores conservadores e de direita, dos argumentos errados que alguns adotam para defender as obras da Copa e as hidroelétricas etc.

Para dialogar com o sentimento difuso de insatisfação revelado pelas mobilizações, não bastam medidas de governo. Talvez tenha chegado a hora, como algumas pessoas têm sugerido, de divulgarmos uma nova “carta aos brasileiros e brasileiras”. Só que desta vez, uma carta em favor das reformas de base, das reformas estruturais.

Quanto a nossa ação de rua, devemos ter presença organizada e massiva nas manifestações que venham a ocorrer. Isto significa milhares de militantes de esquerda, com um adequado serviço de ordem, para proteger nossa militância dos para-militares da direita.

É preciso diferenciar as manifestações  de massa das ações que a direita faz dentro dos atos de massa. E a depender da evolução da conjuntura, nos caberá convocar grandes atos próprios da esquerda político-social.

Independente da forma, o fundamental, como já dissemos, que a esquerda não perca a batalha pelas ruas.

Quanto a batalha da comunicação,  novamente cabe ao governo um papel insubstituível. No atual estágio de mobilização e conflito, não basta contratacar a direita nas redes sociais; é preciso enfrentar a narrativa dos monopólios nas televisões e rádios. O governo precisa entender que sua postura frente ao tema precisa ser alterada já.

Em resumo: trata-se de combinar ruas e urnas, mudando a estratégia e a conduta geral do PT e da
esquerda.

Não há como deslocar a correlação de forças no país, sem luta social. A direita sabe disto tanto quanto nós. A direita quer ocupar as ruas. Não podemos permitir isto. E, ao mesmo tempo, não podemos deixar de mobilizar.

Se não tivermos êxito nesta operação, perderemos a batalha das ruas hoje e a das urnas ano que vem. Mas, se tivermos êxito, poderemos colher aquilo que o direitista Reinaldo Azevedo aponta como risco (para a direita) num texto divulgado recentemente por ele, cujo primeiro parágrafo afirma o seguinte:  "o movimento que está nas ruas provocará uma reciclagem do PT pela esquerda, poderá tornar o resultado das urnas ainda mais inóspito para a direita".

Num resumo: a saída para esta situação existe. Pela esquerda.


*Valter Pomar é membro do Diretório Nacional do PT

Carta aberta do Movimento Passe Livre São Paulo à presidenta


À Presidenta Dilma Rousseff,

Ficamos surpresos com o convite para esta reunião. Imaginamos que também esteja surpresa com o que vem acontecendo no país nas últimas semanas. Esse gesto de diálogo que parte do governo federal destoa do tratamento aos movimentos sociais que tem marcado a política desta gestão. Parece que as revoltas que se espalham pelas cidades do Brasil desde o dia seis de junho tem quebrado velhas catracas e aberto novos caminhos.

O Movimento Passe Livre, desde o começo, foi parte desse processo. Somos um movimento social autônomo, horizontal e apartidário, que jamais pretendeu representar o conjunto de manifestantes que tomou as ruas do país. Nossa palavra é mais uma dentre aquelas gritadas nas ruas, erguidas em cartazes, pixadas nos muros. Em São Paulo, convocamos as manifestações com uma reivindicação clara e concreta: revogar o aumento. Se antes isso parecia impossível, provamos que não era e avançamos na luta por aquela que é e sempre foi a nossa bandeira, um transporte verdadeiramente público. É nesse sentido que viemos até Brasília.

O transporte só pode ser público de verdade se for acessível a todas e todos, ou seja, entendido como um direito universal. A injustiça da tarifa fica mais evidente a cada aumento, a cada vez que mais gente deixa de ter dinheiro para pagar a passagem. Questionar os aumentos é questionar a própria lógica da política tarifária, que submete o transporte ao lucro dos empresários, e não às necessidades da população. Pagar pela circulação na cidade significa tratar a mobilidade não como direito, mas como mercadoria. Isso coloca todos os outros direitos em xeque: ir até a escola, até o hospital, até o parque passa a ter um preço que nem todos podem pagar. O transporte fica limitado ao ir e vir do trabalho, fechando as portas da cidade para seus moradores. É para abri-las que defendemos a tarifa zero.

Nesse sentido gostaríamos de conhecer o posicionamento da presidenta sobre a tarifa zero no transporte público e sobre a PEC 90/11, que inclui o transporte no rol dos direitos sociais do artigo 6o da Constituição Federal. É por entender que o transporte deveria ser tratado como um direito social, amplo e irrestrito, que acreditamos ser necessário ir além de qualquer política limitada a um determinado segmento da sociedade, como os estudantes, no caso do passe livre estudantil. Defendemos o passe livre para todas e todos!

Embora priorizar o transporte coletivo esteja no discurso de todos os governos, na prática o Brasil investe onze vezes mais no transporte individual, por meio de obras viárias e políticas de crédito para o consumo de carros (IPEA, 2011). O dinheiro público deve ser investido em transporte público! Gostaríamos de saber por que a presidenta vetou o inciso V do 16º artigo da Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº 12.587/12) que responsabilizava a União por dar apoio financeiro aos municípios que adotassem políticas de priorização do transporte público. Como deixa claro seu artigo 9º, esta lei prioriza um modelo de gestão privada baseado na tarifa, adotando o ponto de vista das empresas e não o dos usuários. O governo federal precisa tomar a frente no processo de construção de um transporte público de verdade. A municipalização da CIDE, e sua destinação integral e exclusiva ao transporte público, representaria um passo nesse caminho em direção à tarifa zero.

A desoneração de impostos, medida historicamente defendida pelas empresas de transporte, vai no sentido oposto. Abrir mão de tributos significa perder o poder sobre o dinheiro público, liberando verbas às cegas para as máfias dos transportes, sem qualquer transparência e controle. Para atender as demandas populares pelo transporte, é necessário construir instrumentos que coloquem no centro da decisão quem realmente deve ter suas necessidades atendidas: os usuários e trabalhadores do sistema.

Essa reunião com a presidenta foi arrancada pela força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e prisões. Os movimentos sociais no Brasil sempre sofreram com a repressão e a criminalização. Até agora, 2013 não foi diferente: no Mato Grosso do Sul, vem ocorrendo um massacre de indígenas e a Força Nacional assassinou, no mês passado, uma liderança Terena durante uma reintegração de posse; no Distrito Federal, cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) foram presos há poucas semanas em meio às mobilizações contra os impactos da Copa do Mundo da FIFA. A resposta da polícia aos protestos iniciados em junho não destoa do conjunto: bombas de gás foram jogadas dentro de hospitais e faculdades; manifestantes foram perseguidos e espancados pela Polícia Militar; outros foram baleados; centenas de pessoas foram presas arbitrariamente; algumas estão sendo acusadas de formação de quadrilha e incitação ao crime; um homem perdeu a visão; uma garota foi violentada sexualmente por policiais; uma mulher morreu asfixiada pelo gás lacrimogêneo. A verdadeira violência que assistimos neste junho veio do Estado – em todas as suas esferas.

A desmilitarização da polícia, defendida até pela ONU, e uma política nacional de regulamentação do armamento menos letal, proibido em diversos países e condenado por organismos internacionais, são urgentes. Ao oferecer a Força Nacional de Segurança para conter as manifestações, o Ministro da Justiça mostrou que o governo federal insiste em tratar os movimentos sociais como assunto de polícia. As notícias sobre o monitoramento de militantes feito pela Polícia Federal e pela ABIN vão na mesma direção: criminalização da luta popular.

Esperamos que essa reunião marque uma mudança de postura do governo federal que se estenda às outras lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo dos Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, tem sofrido diversos ataques por parte de latifundiários e do poder público; às comunidades atingidas por remoções; aos sem-teto; aos sem-terra e às mães que tiveram os filhos assassinados pela polícia nas periferias. Que a mesma postura se estenda também a todas as cidades que lutam contra o aumento de tarifas e por outro modelo de transporte: São José dos Campos, Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Goiânia, entre muitas outras.

Mais do que sentar à mesa e conversar, o que importa é atender às demandas claras que já estão colocadas pelos movimentos sociais de todo o país. Contra todos os aumentos do transporte público, contra a tarifa, continuaremos nas ruas! Tarifa zero já!

Toda força aos que lutam por uma vida sem catracas!

Movimento Passe Livre São Paulo

24 de junho de 2013

sábado, junho 29, 2013

As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo


As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo
Marilena Chaui
Observações preliminares
O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.
O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação especifica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a redução da tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano
Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que  voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.
Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
- explosão do uso do automóvel individual: a mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;
- explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável além de não contar com uma redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;
- aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Hermínia Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população); em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade;
- o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero.  No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; além da insuficiência quantitativa para atender a demanda, há atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que também são de responsabilidade do governo estadual. No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto, feitos para transportar coisas e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas inter-bairros, de maneira que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores;
Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.

2. As manifestações paulistanas

A tradição de lutas
Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição doquebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.
Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos: 1. introdução da idéia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais; 2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade; 3. introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu: 1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta; 2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais; 3. surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares,  tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico
A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração  desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da midia:
  1. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;
  2. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois com o fato das manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
  3. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a idéia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;
  4. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto,  indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento  assume a aparência de que o  universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem. Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados, e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a violência que condenaram na polícia,
A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:
a)    no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
b)    no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência,  a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;
c)    a crítica ao PT:  de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos 20 anos).
Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuímos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática. Assim, sob este aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência. Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas  capitalistas movidas por interesses privados. Dessa maneira,  a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética. De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas. A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção. Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.
Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura) ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.
Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.
Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensangüentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL. Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.
Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo). Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do poder legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicaram uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.
Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?
Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.
Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:
  1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem não se relacionam  pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
  2.  estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
  3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?
  4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?
Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela Prefeitura e que ela não faria o subsídio implicar em cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio juntamente com outros recursos da Prefeitura. Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público, e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU. Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas  manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei. A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela. Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.   Marilena Chaui

segunda-feira, junho 24, 2013

Movimento Passe Livre (MPL) e mais um pouco: anseios de uma sociedade que quer mais!?

Analisar o Movimento Passe Livre (MPL) e as últimas manifestações, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, BH, DF, João Pessoa e outras cidades no Brasil, se trata de um assunto extremamente delicado e complexo, tendo em vista a forma e essência dos atos, principalmente estes com vários fatos e acontecimentos de uma velocidade e dinâmica que impedem uma análise mais precisa, desde já, informo que essa análise está longe de se esgotar neste artigo.

Nas cidades supracitadas entre outras, ocorreram diversas manifestações pela redução da tarifa do transporte público coletivo. Os protestos foram marcados pelo protagonismo da juventude, porém esse não foi o único fator em comum e a repressão da Polícia Militar (sob comando dos governos estaduais). Vale destacar também a grande importância da ferramenta do facebook na mobilização.

Os protestos cada vez mais aumentam de proporção, estes levaram mais de 200 mil pessoas às ruas em várias cidades no dia 17 de junho, e continuam lotando as ruas com milhares de manifestantes, algo que não se via com tantas proporções nos últimos tempos. Se trata de um momento inédito, um verdadeiro “fenômeno” cheio de contradições e peculiaridades.

O aumento de proporção do movimento, em seu início, foi acompanhada pela repressão policial. As imagens assustam e confirmam a razão de termos a polícia mais violenta do mundo. Autoritarismo, truculência, descontrole e a brutalidade são visíveis nas imagens/vídeos, depoimentos, e pior, nas marcas das vítimas. Vale ressaltar, que essa é a realidade cotidiana de muitas periferias.

A posição da mídia deu um giro enorme. Esta que se colocava contra os protestos e “vandalismos” teve que recuar. Os protestos foram até destaque no The New York Times e outros meios da imprensa internacional. A mídia mudou completamente a cobertura, inclusive divulgando e lucrando com isso, apesar das contradições, a mesma “aplaude” os protestos pacifistas e condena a “minoria radical”. E isso, se tratando do PIG (Partido da Imprensa Golpista), nunca será atoa.

A manifestação que começou tímida, se trata de um verdadeiro “fenômeno”, pois ampliou sua pauta muito além do Passe Livre. Como muitos fazem questão de afirmar, “a luta não é por 20 centavos, é por direitos”. Vale ressaltar, que o aumento das tarifas e manifestações do tipo não são novidades na história, porém essa teve algo peculiar e de proporções que ninguém esperava. Não se tem hoje, como prever os rumos e consequências a longo prazo, nem tão pouco a curto e médio com precisão.

O movimento tem como maior sentimento o de descontentamento e insatisfação da sociedade, porém de maneira muito difusa e “espontânea”. As manifestações ganham um caráter genérico e sem uma pauta clara, se trata de um movimento que questiona o atual modelo de Estado (inclui ai instituições, representações, políticas e serviços públicos) e que não vê nos modelos clássicos de organização a sua representatividade. Existe por uma maioria a negação da Política (e nisso entra os governos, partidos, entidades etc), pois, segundo alguns manifestantes, o protesto não é “política”, é “luta por direitos”.

Do ponto de vista político, os atos ganharam proporções inimagináveis. Pode se dizer hoje, que de certa forma, “perdeu-se o controle”, afinal, é difícil e tenso coordenar e acompanhar de maneira totalmente organizada um protesto com mais de 200 mil pessoas. Vale destacar que a maioria dos participantes não possuem experiência com esses métodos de luta social.

É forte também o discurso anti-partidário e aversão a qualquer forma de organização/entidade social. Nas manifestações em todo o Brasil, os partidos são vaiados, com suas bandeiras rasgadas, agredidos e constrangidos pelos “manifestantes independentes” que gritam “sem partido, sempartido”, o mesmo acontece com os movimentos históricos e entidades de luta no Brasil, como CUT, MST e outras. Vale o registro que na ditadura civil-militar também eram proibidos partidos, e o discurso apartidário é reforçado pela a mídia brasileira (só para reflexão).

Os movimentos que iniciaram com as pautas históricas do campo da esquerda foi disputado nas ruas. Hoje, as mais diversas bandeiras tomam contas dos protestos, desde questões como o próprio passe livre, contra o cura gay, e contra o estatuto do nascituro, assim como “pelo preço justo do Play Station 4”, contra a PEC 37 e pela redução da maioridade penal.

Hoje, não podemos cair na dicotomia maniqueísta de afirmar que o movimento virou fascista e de ultra-neoliberal, ou mesmo que se trata de um movimento da esquerda clássica. Não é nenhum, nem o outro. O movimento é muito mais complexo, contraditório e multifacetado do que essas simples afirmações.

De modo geral, as manifestações tem ganhado um caráter patriota/nacionalista e pacifista (que é diferente de pacífico). As pessoas vão de branco, com a bandeira do Brasil e cantam o hino nacional durante o percurso. Algumas cidades, a manifestação terminou em oração coletiva na praia. Na maioria, teve-se uma verdadeira criminalização da pobreza, onde os estereótipos de quem era da “periferia” e fazia qualquer movimento que fugisse do padrão era vaiado e denunciado através da “palavra de ordem” “sem vandalismo, sem vandalismo”. A PM cabia prender e sabe-se lá mais o que em atendimento aos “manifestantes pacíficos”.

A mídia enfoca o caráter pacifista, principalmente para mostrar que existe uma “dicotomia” no movimento, já que a minoria que não canta hino e não vai de branco são os “vândalos”, “oportunistas” e “marginais” que não tem como evitar, isso segundo a Rede Globo (que quebrou sua grade para mostrar todos os protestos no dia 20/06).

Uma coisa é fato, o protesto/manifestação/ato corre o risco de ser capitalizado pelo senso-comum, pela direita e setores bem conservadores do país e se tornarem possivelmente em “Marchas pela Família”, como na época da ditadura. Isso não significa, porém, que irá acontecer, mas é uma possibilidade. Como o contrário pode ser totalmente verdadeiro, só a luta cotidiana e decorrer do processo poderá definir. Por enquanto, nada está dado.

Não terá como aprofundar a análise de metodologia e de coordenação do movimento, mas sobre isso se trata de um exercício político para a militância, principalmente de esquerda. Um exercício de buscar unidade política dos partidos, entidades e organizações da esquerda, de construir atos onde os protagonistas sejam o povo e suas bandeiras históricas. A esquerda precisa se unir e pautar projetos dos trabalhadores, como mais investimento na saúde, educação, reforma política e outras pautas. Isso precisa ser feito de maneira clara e precisa, para obter conquistas e assim, poder avançar nas lutas.

O PT através de suas mais variadas instâncias (Direções Nacional, Estaduais, Municipais, Juventude e forças políticas) lançaram nota de apoio as manifestações e se solidarizaram com a luta e os protestos no país. Porém, se trata ainda de um verdadeiro tensionamento interno. Afinal, as manifestações representam insatisfação (seja de esquerda, direita ou senso-comum) e coloca para o partido e governo a necessidade de fazer autocrítica do que não fizemos, avançar nas pautas já conquistas e sair do imobilismo. O PT, mais do que qualquer partido, precisa se fazer presente nas ruas, disputar as pautas, unificar a esquerda e avançar através dos governos.

O pronunciamento da Presidenta Dilma aponta a sensibilidade do governo com os anseios das manifestações, elogiando a democracia que conquistamos através de luta contra a ditadura. No dia 21 de junho, Dilma falou para todo o Brasil que o governo quer muito mais do que tem hoje, ela tensinou o Congresso Nacional para a votação em prol dos 100% dos royalties do pré-sal para a Educação, falou da necessidade da Reforma Política nos três poderes, que o movimento é legítimo e que se tiver uma pauta clara o Governo está aberto para o diálogo com os representantes, falou também do Plano Nacional de Mobilidade Urbana e da vinda dos médicos estrangeiros como avanço para a política de saúde.
Precisamos ir além, precisamos desengavetar e chamar toda a base para pautar Reforma Política no Brasil de maneira forte e determinada, não podemos adiar mais a Democratização dos Meios de Comunicação e outras pautas históricas do PT e da esquerda, como: reforma agrária, reforma urbana, primazia das políticas públicas em detrimento do mercado etc.

No que se refere a luta por um transporte público de qualidade e efetivo, é importante pautar que as empresas de ônibus se tratam do verdadeiro inimigo, tanto do povo como de governos progressistas. Para garantir seus lucros desmedidos, as empresas são medem esforços, seja na perseguição de militantes, ou mesmo financiando campanhas eleitorais para garantir seus lobbies. Exemplo claro disso, é que as empresas arcam minimamente sobre a tarifa, sendo a maior oneração para os governos, e principalmente para a população.

O Movimento Passe Livre (MPL), com todo o apoio da esquerda, deve agora construir unidade em torno de um projeto que ultrapasse o “contra o aumento e pela redução das tarifas”, precisamos ir as ruas exigir um novo modelo de política pública de mobilidade urbana, exigir transparência e auditoria das planilhas superfaturadas das empresas e que obscurecem o lucro real, denunciar os monopólios, as concessões irregulares, exigir transparência e mais controle social nas decisões que envolvam a política.

Outro ponto que podemos avançar, é com o Passe Livre Cultural, que se trata da meia-passagem nos finais de semana e feriados para todos os usuários de transporte, gerando assim mais acesso a cultura, ao lazer e a cidade por parte da classe trabalhadora. Essa já realidade em alguns municípios, e que devem servir de exemplo na democratização do acesso ao território.

O Passe Livre já realidade em algumas cidades no Brasil. Aqui destaco a experiência em João Pessoa/PB, recém lançada pelo governo municipal, onde o PT encabeça através do Prefeito Luciano Cartaxo. Apesar das limitações e restrições e apenas para estudantes da rede municipal (o que não dará também para um maior aprofundamento neste artigo), o passe livre em João Pessoa representa avanços e possíveis caminhos a serem trilhados pelas gestões.

As movimentações já conquistaram vitórias nesse sentido. Em várias cidades a tarifa já foi reduzida, como em São Paulo, João Pessoa, Cuiabá, e outras cidades. Porém, em sua maioria o lucro dos empresário continua intocável, e aí está a ferida para ser mexida: precisamos onerar as empresas sobre o preço da tarifa, e não a população ou os governos.

O Passe Livre se trata de um direito necessário para democratizar o acesso e a livre circulação nas cidades. O PL para estudantes e juventudes é deliberação da 2º Conferência Nacional de Juventude, essa é a nossa meta, a nossa estratégia. Atrair a sociedade para essa pauta é fundamental, significa a conquista de um direito fundamental, o de ir e vir, e dizer aos empresários que não se lucra com esse e tantos direitos.

As lutas sociais, e principalmente suas conquistas são pedagógicas e importantes, mostram para a sociedade que através da luta social podemos ter ganhos concretos, e se isso vale para a tarifa, vale para outras pautas históricas. Os últimos movimentos, além disso, mostram para a esquerda a necessidade de se reciclar? De ter novos métodos? De não subestimar o “senso-comum”? De “voltar” as massas? Questionamentos que se forem respondidos agora, talvez seja equivocado, mas, alerta no sentido de mudança, e sempre, de saída pela esquerda.

Nosso papel, militantes dos movimentos sociais, partidos, entidades e mais diversos segmentos é de participar e construir essas manifestações. Disputar nas ruas, como sempre fizemos. Não podemos afirmar que a batalhar está perdida, não podemos nos ausentar. É afirmar que o gigante nunca esteve adormecido, sempre as lutas foram pautadas e enfrentadas nesse país, mesmo no descendo de lutas de massas. O Brasil nunca dormiu. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Um salve a democracia e a participação popular.

Shellen Galdino
Estudante de Serviço Social da UFPB.
Militante da Articulação de Esquerda, tendência interna do PT.

A direita também disputa ruas e urnas


Por Valter Pomar*

Quem militou ou estudou os acontecimentos anteriores ao golpe de 1964 sabe muito bem que a direita é capaz de combinar todas as formas de luta. Conhece, também, a diferença entre “organizações sociais” e “movimentos sociais”, sendo que os movimentos muitas vezes podem ser explosivos e espontâneos.

Já a geração que cresceu com o Partido dos Trabalhadores acostumou-se a outra situação. Nos anos 1980 e 1990, a esquerda ganhava nas ruas, enquanto a direita vencia nas urnas. E a partir de 2002, a esquerda passou a ganhar nas urnas, chegando muitas vezes a deixar as ruas para a oposição de esquerda.

A direita, no dizer de alguns, estaria “sem programa”, “sem rumo”, controlando “apenas”  o PIG, que já não seria mais capaz de controlar a “opinião pública”, apenas a “opinião publicada”.

Era como se tivéssemos todo o tempo do mundo para resolver os problemas que vinham se acumulando: alterações geracionais e sociológicas, crescimento do conservadorismo ideológico, crescente perda de vínculos entre a esquerda e as massas, ampliação do descontentamento com ações (e com falta de ações) por parte dos nossos governos, decaimento do PT à vala comum dos partidos tradicionais etc.

Apesar destes problemas, o discurso dominante na esquerda brasileira era, até ontem, de dois tipos.

Por um lado, no petismo e aliados, o contentamento com nossas realizações passadas e presentes, acompanhada do reconhecimento mais ou menos ritual de que “precisamos mais” e de que “precisamos mudar práticas”.

Por outro lado, na esquerda oposicionista (PSOL, PSTU e outros), a crítica aos limites do petismo, acompanhada da crença de que através da luta política e social, seria possível derrotar o PT e, no lugar, colocar uma “esquerda mais de esquerda”.

As manifestações populares ocorridas nos últimos dias, especialmente as de ontem, atropelaram estas e outras interpretações.

Primeiro, reafirmaram que os movimentos sociais existem, mas que eles podem ser espontâneos. E que alguns autoproclamados “movimentos sociais”, assim como muitos partidos “populares”,  não conseguem reunir, nem tampouco dirigir, uma mínima fração das centenas de milhares de pessoas dispostas a sair ás ruas, para manifestar-se.

Em segundo lugar, mostraram que a direita sabe disputar as ruas, como parte de uma estratégia que hoje ainda pretende nos derrotar nas urnas. Mas que sempre pode evoluir em outras direções.

Frente a esta nova situação, qual deve ser a atitude do conjunto da esquerda brasileira, especialmente a nossa, que somos do Partido dos Trabalhadores?

Em primeiro lugar, não confundir focinho de porco com tomada. As manifestações das últimas semanas não são “de direita” ou "fascistas". Se isto fosse verdade, estaríamos realmente em péssimos lençóis.

As manifestações (ainda) são expressão de uma insatisfação social difusa e profunda, especialmente da juventude urbana. Não são predominantemente manifestações da chamada classe média conservadora, tampouco são manifestações da classe trabalhadora clássica.

A forma das manifestações corresponde a esta base social e geracional: são como um mural do facebook, onde cada qual posta o que quer. E tem todos os limites políticos e organizativos de uma geração que cresceu num momento "estranho" da história do Brasil, em que a classe dominante continua hegemonizando a sociedade, enquanto a esquerda aparentemente hegemoniza a política.

A insatisfação expressa pelas manifestações tem dois focos: as políticas públicas e o sistema político.

As políticas públicas demandadas coincidem com o programa histórico do PT e da esquerda. E a crítica ao sistema político dialoga com os motivos pelos quais defendemos a reforma política.

Por isto, muita gente no PT e na esquerda acreditava que seria fácil aproximar-se, participar e disputar a manifestação. Alguns, até, sonhavam em dirigir.

Acontece que, por sermos o principal partido do país, por conta da ação do consórcio direita/mídia, pelos erros politicos acumulados ao longo dos últimos dez anos, o PT se converteu para muitos em símbolo principal do sistema político condenado pelas manifestações.

Esta condição foi reforçada, nos últimos dias, pela atitude desastrosa de duas lideranças do PT: o ministro da Justiça, Cardozo, que ofereceu a ajuda de tropas federais para o governador tucano “lidar” com as manifestações; e o prefeito Haddad, que nem na entrada nem na saída teve o bom senso de diferenciar-se do governador.

O foco no PT, aliado ao caráter progressista das demandas por políticas públicas, fez com que parte da oposição de esquerda acreditasse que seria possível cavalgar as manifestações. Ledo engano.

Como vimos, a rejeição ao PT se estendeu ao conjunto dos partidos e organizações da esquerda político-social. Mostrando a ilusão dos que pensam que, através da luta social (ou da disputa eleitoral) seriam capazes de derrotar o PT e colocar algo mais à esquerda no lugar.

A verdade é que ou o PT se recicla, gira à esquerda, aprofunda as mudanças no país; ou toda a esquerda será atraída ao fundo. E isto inclui os que saíram do PT, e também os que nos últimos anos flertaram abertamente com o discurso anti-partido e com certo nacionalismo. Vale lembrar que a tentativa de impedir a presença de bandeiras partidárias em mobilizações sociais não começou agora.

O rechaço ao sistema político, à corrupção, aos partidos em geral e ao PT em particular não significa, entretanto, que as manifestações sejam da direita. Significa algo ao mesmo tempo melhor e pior: o senso comum saiu às ruas. O que inclui certo uso que vem sendo dado nas manifestações aos símbolos nacionais.

Este senso comum, construído ao longo dos últimos anos, em parte por omissão e em parte por ação nossa, abre enorme espaço para a direita. Mas, ao mesmo tempo, à medida que este senso comum participa abertamente da disputa política, criam-se condições melhores para que possamos disputá-lo.

Hoje, o consórcio direita/mídia está ganhando a disputa pelo pauta das manifestações. Além disso, há uma operação articulada de participação da direita, seja através da presença de manifestantes, seja através da difusão de determinadas palavras de ordem, seja através da ação de grupos paramilitares.

Mas a direita tem dificuldades para ser consequente nesta disputa. O sistema político brasileiro é controlado pela direita, não pela esquerda. E as bandeiras sociais que aparecem nas manifestações exigem, pelo menos, uma grande reforma tributária, além de menos dinheiro público para banqueiros e grandes empresários.

É por isto que a direita tem pressa em mudar a pauta das manifestações, em direção a Dilma e ao PT. O problema é que esta politização de direita pode esvaziar o caráter espontâneo e a legitimidade do movimento; além de produzir um efeito convocatória sobre as bases sociais do lulismo, do petismo e da esquerda brasileira.

Por isto, é fundamental que o PT e o conjunto da esquerda disputem o espaço das ruas, e disputem corações e mentes dos manifestantes e dos setores sociais por eles representados. Não podemos abandonar as ruas, não podemos deixar de disputar estes setores.

Para vencer esta disputa teremos que combinar ação de governo, ação militante na rua, comunicação de massas e reconstruir a unidade da esquerda.

A premissa, claro, é que nossos governos adotem medidas imediatas que respondam às demandas reais por mais e melhores políticas públicas. Sem isto, não teremos a menor chance de vencer.

Não basta dizer o que já fizemos. É preciso dar conta do que falta fazer. E, principalmente, explicar didaticamente, politicamente, as ações do governo. Marcando a diferença programática, simbólica, política, entre a ação de governo de nosso partido e os demais.

O anúncio conjunto (Alckmin/Haddad) de redução da tarifa e a oferta da força pública feita por Cardozo a Alckmin são exemplos do que não pode se repetir. Para não falar das atitudes conservadoras contra os povos indígenas, da atitude complacente com setores conservadores e de direita, dos argumentos errados que alguns adotam para defender as obras da Copa e as hidroelétricas etc.

Para dialogar com o sentimento difuso de insatisfação revelado pelas mobilizações, não bastam medidas de governo. Talvez tenha chegado a hora, como algumas pessoas têm sugerido, de divulgarmos uma nova “carta aos brasileiros e brasileiras”. Só que desta vez, uma carta em favor das reformas de base, das reformas estruturais.

Quanto a nossa ação de rua, devemos ter presença organizada e massiva nas manifestações que venham a ocorrer. Isto significa milhares de militantes de esquerda, com um adequado serviço de ordem, para proteger nossa militância dos para-militares da direita.

É preciso diferenciar as manifestações  de massa das ações que a direita faz dentro dos atos de massa. E a depender da evolução da conjuntura, nos caberá convocar grandes atos próprios da esquerda político-social.

Independente da forma, o fundamental, como já dissemos, que a esquerda não perca a batalha pelas ruas.

Quanto a batalha da comunicação,  novamente cabe ao governo um papel insubstituível. No atual estágio de mobilização e conflito, não basta contratacar a direita nas redes sociais; é preciso enfrentar a narrativa dos monopólios nas televisões e rádios. O governo precisa entender que sua postura frente ao tema precisa ser alterada já.

Em resumo: trata-se de combinar ruas e urnas, mudando a estratégia e a conduta geral do PT e da
esquerda.

Não há como deslocar a correlação de forças no país, sem luta social. A direita sabe disto tanto quanto nós. A direita quer ocupar as ruas. Não podemos permitir isto. E, ao mesmo tempo, não podemos deixar de mobilizar.

Se não tivermos êxito nesta operação, perderemos a batalha das ruas hoje e a das urnas ano que vem. Mas, se tivermos êxito, poderemos colher aquilo que o direitista Reinaldo Azevedo aponta como risco (para a direita) num texto divulgado recentemente por ele, cujo primeiro parágrafo afirma o seguinte:  "o movimento que está nas ruas provocará uma reciclagem do PT pela esquerda, poderá tornar o resultado das urnas ainda mais inóspito para a direita".

Num resumo: a saída para esta situação existe. Pela esquerda.


*Valter Pomar é membro do Diretório Nacional do PT

Carta aberta do Movimento Passe Livre São Paulo à presidenta


À Presidenta Dilma Rousseff,

Ficamos surpresos com o convite para esta reunião. Imaginamos que também esteja surpresa com o que vem acontecendo no país nas últimas semanas. Esse gesto de diálogo que parte do governo federal destoa do tratamento aos movimentos sociais que tem marcado a política desta gestão. Parece que as revoltas que se espalham pelas cidades do Brasil desde o dia seis de junho tem quebrado velhas catracas e aberto novos caminhos.

O Movimento Passe Livre, desde o começo, foi parte desse processo. Somos um movimento social autônomo, horizontal e apartidário, que jamais pretendeu representar o conjunto de manifestantes que tomou as ruas do país. Nossa palavra é mais uma dentre aquelas gritadas nas ruas, erguidas em cartazes, pixadas nos muros. Em São Paulo, convocamos as manifestações com uma reivindicação clara e concreta: revogar o aumento. Se antes isso parecia impossível, provamos que não era e avançamos na luta por aquela que é e sempre foi a nossa bandeira, um transporte verdadeiramente público. É nesse sentido que viemos até Brasília.

O transporte só pode ser público de verdade se for acessível a todas e todos, ou seja, entendido como um direito universal. A injustiça da tarifa fica mais evidente a cada aumento, a cada vez que mais gente deixa de ter dinheiro para pagar a passagem. Questionar os aumentos é questionar a própria lógica da política tarifária, que submete o transporte ao lucro dos empresários, e não às necessidades da população. Pagar pela circulação na cidade significa tratar a mobilidade não como direito, mas como mercadoria. Isso coloca todos os outros direitos em xeque: ir até a escola, até o hospital, até o parque passa a ter um preço que nem todos podem pagar. O transporte fica limitado ao ir e vir do trabalho, fechando as portas da cidade para seus moradores. É para abri-las que defendemos a tarifa zero.

Nesse sentido gostaríamos de conhecer o posicionamento da presidenta sobre a tarifa zero no transporte público e sobre a PEC 90/11, que inclui o transporte no rol dos direitos sociais do artigo 6o da Constituição Federal. É por entender que o transporte deveria ser tratado como um direito social, amplo e irrestrito, que acreditamos ser necessário ir além de qualquer política limitada a um determinado segmento da sociedade, como os estudantes, no caso do passe livre estudantil. Defendemos o passe livre para todas e todos!

Embora priorizar o transporte coletivo esteja no discurso de todos os governos, na prática o Brasil investe onze vezes mais no transporte individual, por meio de obras viárias e políticas de crédito para o consumo de carros (IPEA, 2011). O dinheiro público deve ser investido em transporte público! Gostaríamos de saber por que a presidenta vetou o inciso V do 16º artigo da Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº 12.587/12) que responsabilizava a União por dar apoio financeiro aos municípios que adotassem políticas de priorização do transporte público. Como deixa claro seu artigo 9º, esta lei prioriza um modelo de gestão privada baseado na tarifa, adotando o ponto de vista das empresas e não o dos usuários. O governo federal precisa tomar a frente no processo de construção de um transporte público de verdade. A municipalização da CIDE, e sua destinação integral e exclusiva ao transporte público, representaria um passo nesse caminho em direção à tarifa zero.

A desoneração de impostos, medida historicamente defendida pelas empresas de transporte, vai no sentido oposto. Abrir mão de tributos significa perder o poder sobre o dinheiro público, liberando verbas às cegas para as máfias dos transportes, sem qualquer transparência e controle. Para atender as demandas populares pelo transporte, é necessário construir instrumentos que coloquem no centro da decisão quem realmente deve ter suas necessidades atendidas: os usuários e trabalhadores do sistema.

Essa reunião com a presidenta foi arrancada pela força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e prisões. Os movimentos sociais no Brasil sempre sofreram com a repressão e a criminalização. Até agora, 2013 não foi diferente: no Mato Grosso do Sul, vem ocorrendo um massacre de indígenas e a Força Nacional assassinou, no mês passado, uma liderança Terena durante uma reintegração de posse; no Distrito Federal, cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) foram presos há poucas semanas em meio às mobilizações contra os impactos da Copa do Mundo da FIFA. A resposta da polícia aos protestos iniciados em junho não destoa do conjunto: bombas de gás foram jogadas dentro de hospitais e faculdades; manifestantes foram perseguidos e espancados pela Polícia Militar; outros foram baleados; centenas de pessoas foram presas arbitrariamente; algumas estão sendo acusadas de formação de quadrilha e incitação ao crime; um homem perdeu a visão; uma garota foi violentada sexualmente por policiais; uma mulher morreu asfixiada pelo gás lacrimogêneo. A verdadeira violência que assistimos neste junho veio do Estado – em todas as suas esferas.

A desmilitarização da polícia, defendida até pela ONU, e uma política nacional de regulamentação do armamento menos letal, proibido em diversos países e condenado por organismos internacionais, são urgentes. Ao oferecer a Força Nacional de Segurança para conter as manifestações, o Ministro da Justiça mostrou que o governo federal insiste em tratar os movimentos sociais como assunto de polícia. As notícias sobre o monitoramento de militantes feito pela Polícia Federal e pela ABIN vão na mesma direção: criminalização da luta popular.

Esperamos que essa reunião marque uma mudança de postura do governo federal que se estenda às outras lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo dos Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, tem sofrido diversos ataques por parte de latifundiários e do poder público; às comunidades atingidas por remoções; aos sem-teto; aos sem-terra e às mães que tiveram os filhos assassinados pela polícia nas periferias. Que a mesma postura se estenda também a todas as cidades que lutam contra o aumento de tarifas e por outro modelo de transporte: São José dos Campos, Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Goiânia, entre muitas outras.

Mais do que sentar à mesa e conversar, o que importa é atender às demandas claras que já estão colocadas pelos movimentos sociais de todo o país. Contra todos os aumentos do transporte público, contra a tarifa, continuaremos nas ruas! Tarifa zero já!

Toda força aos que lutam por uma vida sem catracas!

Movimento Passe Livre São Paulo

24 de junho de 2013