O historiador comprometido com as lutas populares perante a história oficial
Aos intelectuais comprometidos cabe a missão de contribuir para a formação tanto de
militantes combativos quanto de liderança
Anita Leocádia Prestes
Não existe História neutra ou História que seja uma mera reprodução dos fatos ocorridos em
determinado momento histórico. O fato histórico é sempre uma escolha do historiador, um
recorte feito por ele e que reflete sua subjetividade, seu posicionamento diante do mundo e
daquela realidade que está sendo por ele descrita. Não há duas narrativas de um mesmo
acontecimento que sejam iguais ou coincidentes. A História é uma construção, construção esta
que pode ter maior ou menor compromisso com a evidência, mas na qual existe sempre uma
carga indiscutível de subjetividade.
Numa sociedade atravessada, e movida, por conflitos sociais, ou seja, numa sociedade onde há
explorados e exploradores, onde há, portanto, classes antagônicas, a História é sempre uma
construção que reflete os interesses dos grupos sociais dominantes, que controlam os meios
de comunicação. Em outras palavras, a História é uma construção das classes sociais que
detém o poder e os meios de comunicação. E isso é verdade, mesmo quando tal situação é
mascarada, não estando explicitada, quando não é evidente.
Por isso mesmo, o historiador, aquele que se propõe a compreender e explicar os fenômenos
que têm lugar nas sociedades humanas, precisa ser um questionador, uma vez que ele, sendo
um personagem do seu tempo, inserido em determinada sociedade de uma determinada
época, não é nem pode ser neutro. No máximo, conseguirá manter uma neutralidade
aparente.
Nos dias de hoje, a luta ideológica é a principal forma da luta de classes, que não deixará de
existir enquanto perdurarem o capitalismo e a exploração do homem pelo homem. As classes
dominantes buscam a hegemonia através do consenso. Mas, quando necessário, apelam para
a coerção.
Eis a razão por que a elaboração da História Oficial adquire uma importância crescente nas
sociedades contemporâneas. Trata-se de proclamar e difundir as vitórias e os sucessos
alcançados pelos donos do poder, de hoje e do passado, nos permanentes conflitos sociais
presentes na história mundial. Trata-se de consagrar o capitalismo. Em contrapartida, os
ideais e as lutas dos setores, que não obtiveram êxito em seus propósitos revolucionários e
transformadores e, muitas vezes, sofreram duras derrotas, são, segundo a lógica da História
Oficial, esquecidos, silenciados, deturpados e combatidos. Em nossas sociedades
contemporâneas, são os intelectuais comprometidos com a burguesia que cumprem a função
de produzir tal História Oficial. Dessa forma, são consagradas inúmeras deformações
históricas, inúmeras inverdades históricas e silenciados numerosos acontecimentos que não
são do interesse dos setores dominantes que sejam do conhecimento da grande maioria das
pessoas e, em particular, das novas gerações.
Entretanto, a hegemonia das classes dominantes nunca é absoluta, pois a exploração
capitalista e o agravamento dos conflitos sociais levam ao surgimento de intelectuais
comprometidos com os interesses dos trabalhadores, dos explorados e dos oprimidos.
Observação fundamental para quem, como nós, quer contribuir para a construção de uma
outra História, uma História comprometida com a evidência, uma História que possa, portanto,
ajudar na elaboração de propostas libertadoras e de emancipação da grande maioria dos
homens e mulheres explorados, oprimidos e subordinados na sociedade capitalista em que
vivemos. O historiador comprometido com tal proposta – e também o professor de História,
responsável pela formação das novas gerações – poderá transformar-se num intelectual a
serviço dos interesses populares, dos interesses da maioria do povo brasileiro, se estiver
atento para a postura militante que deve assumir diante da História Oficial, produzida pelos
intelectuais comprometidos com a burguesia.
Nesse esforço, parece-me importante resgatar a memória daqueles que lutaram por justiça
social, mas não conseguiram alcançar a vitória, deixando, entretanto um legado importante
para as gerações subsequentes. A respeito, gostaria de citar dois autores – o poeta francês e
resistente durante a ocupação nazista da França, Paul Eluard e o intelectual inglês do final do
séc. 19, William Morris :
Paul Eluard: “Ainda que não tivesse tido, em toda minha vida, mais do que um único momento
de esperança, teria travado este combate. Inclusive, se hei de perdê-lo, outros o ganharão.
Todos os outros.”
William Morris: “A Comuna de Paris não é senão um elo na luta que teve lugar ao longo da
história dos oprimidos contra os opressores; e, sem todas as derrotas do passado, não
teríamos a esperança de uma vitória final.”
Finalmente, gostaria de destacar o papel dos intelectuais – e, em particular, dos historiadores
e professores de História - junto aos movimentos populares, mas principalmente nas escolas,
nas salas de aula e no trabalho de pesquisa histórica, no sentido de formar jovens
questionadores, cidadãos que não aceitem o consenso dominante, que estejam dispostos a se
contrapor à hegemonia dos setores dominantes. Aos intelectuais comprometidos com as lutas
populares cabe a missão de contribuir para a formação tanto de militantes combativos quanto
de lideranças orientadas para uma perspectiva de elaboração de uma alternativa de
emancipação social para nosso povo, perspectiva que, a meu ver, só poderá ser socialista. Mas
um socialismo que não seja “nem cópia nem decalque, mas sim criação heroica” do nosso
povo, nas palavras de um grande revolucionário latino-americano - José Carlos Mariátegui.
Anita Leocádia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História
Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.
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