As empresas gigantes do cultivo da cana têm assumido a educação formal na região centro-sul do país
09/03/2011
Roberta Traspadini
1.O Projeto Agora: a educação formal a serviço do capital
Neste texto trataremos como as empresas gigantes do cultivo da cana têm assumido a educação formal na região centro-sul do país, que concentra praticamente 90% de toda produção canavieira do Brasil.
Cem municípios da região centro sul, espalhados por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás, encubam o processo de educação formal denominado Projeto Agora.
Este projeto dirigido para a educação formal de educandos da 7ª. e 8ª. series, com idade entre 12 a 15 anos, é uma parceria público-privada entre instituições governamentais, alguns sindicatos e o grande capital. Itaú, Monsanto, Basf, Dedine, CEISI, Amyris, BP, FMC e SEW Eurodrive, são as empresas centrais do processo.
2.Quais as concepções manifestas no kit educativo?
O documento nos mostra cinco concepções dirigidas à formação da futura geração de trabalhadores:
1.Desenvolvimento e progresso. Evidenciada pelo aparente rico histórico da monocultura e do latifúndio no Brasil que não é, no documento, avesso à diversidade produtiva.
2.Inclusão social com dignidade. Traz a idéia de jovem empreendedor associado ao trabalho técnico na indústria da cana, que não relata a particularidade histórica do trabalho escravo e da superexploração deste cultivo em tempos atuais.
3.História reduzida à vitória do capital. Neste ponto não aparecem as lutas ocorridas nos territórios, as disputas reais vividas pelos diversos sujeitos sociais, e a produção de processos políticos antagônicos sobre a apropriação do trabalho.
4.Terra e riqueza associada ao progresso. Processo que não questiona nem o tamanho da propriedade, nem o uso da terra, e principalmente, não relata as contradições na forma e no conteúdo da utilização dos recursos, e do trabalho.
5. Educação adestradora. Uma validação da lógica dominante voltada para os grandes projetos, para a incorporação de um ser pertencente à vantagem competitiva do grande capital, ou um ser excluído desta possibilidade.
3. O que está por trás da leitura?
O kit educativo é uma cartilha de agitação e propaganda da indústria canavieira. Faz um superficial recorrido histórico sobre o cultivo da cana até o Brasil colonial, onde não são manifestas lutas, disputas, contestações à imposição do poder.
As concepções de colônia de exploração e de plantation manifestas na cartilha não evidenciam o trabalho escravo, o monocultivo e o latifúndio como mola propulsora do processo de desenvolvimento brasileiro, em que expropriação e exploração constituem as raízes ilícitas do enriquecimento do capital no território.
Na superficialidade demonstra sua capacidade destruidora da educação e da história nos sonhos concretos dos jovens sujeitos.
Da debilidade histórica o texto passa para os dados – IBGE -atuais sobre a posição do Brasil no ranking mundial da produção de cana, como se isto fosse fruto de uma relação de igualdade entre trabalhadores e capitalistas.
Mostra que o Brasil é o primeiro produtor de cana do mundo com 645 milhões de toneladas produzidas em 2008. Mas não diz o que isto significa na prática dos territórios e das vidas produtoras da riqueza expropriada pelo capital.
Salta aos olhos que o documento é mais do que agitação e propaganda. É um processo complexo e diversificado de formação ideológica através da educação formal.
É um processo de construção da intencionalidade “educativa” do capital. Formação para a consolidação de um exército industrial de reservas consciente de sua necessidade de inclusão dentro da ordem.
É um processo de construção da educação formal para a manutenção da ordem e do progresso burgueses, que não admite outro conceito que não o da benevolência do capital na vida dos sujeitos, na produção da Pátria, na construção da era global.
É um processo de construção ético-moral burguês que oculta o real. Em sua aparente máscara de inclusão, prosperidade, modernização, encobre a história da opressão-exploração-dominação.
O que no kit educativo aparece como dado, para nós trabalhadores deve ser entendido como questões que nos permitam revelar o que está oculto no ponto de vista colocado.
4. Quais são as grandes questões a serem recuperadas?
a. A questão da terra: segundo o documento, a produção de cana abarca mais ou menos 8 milhões de hectares de terra no Brasil, o que significa somente 2,5% das terras agricultáveis.
Esqueceram de dizer que nos estados em que está a maior concentração, a porcentagem de terras é gigantesca e nos demais, resta saber quem são os donos das sementes, das propriedades, da compra direto da produção dos pequenos produtores rurais.
b. A questão do trabalho e da produtividade: destaca a importância das máquinas colheitadeiras. Mostra não só o aumento da produtividade do trabalho como a possibilidade de ampliação dos números de participação do setor no PIB nacional. Mostra que a produtividade homem/dia saiu de 6 a 10 toneladas na colheita manual, para 500 a 800 toneladas com a colheita mecânica.
Esqueceram de relatar a real condição vivida dos migrantes da cana no Brasil, em busca de uma oportunidade. Aqui temos dois problemas em um. A continuidade do trabalho escravo, e o desemprego estrutural fruto da mecanização. O monocultivo e o latifúndio se apresentam, ao longo da história, como péssimos exemplos de desenvolvimento e inclusão social.
c. A questão da “oportunidade e do desenvolvimento”: trabalha a noção de desenvolvimento como sinônimo de mecanização do campo. A cana é, para eles, o principal motor econômico, político e cultural colocado em movimento nas relações sociais da região. Segundo seus ideólogos, também permite um modelo de desenvolvimento para as cidades com projetos sociais, educativos, culturais e com o progresso da rede de serviços que gera uma economia com gigantesco potencial de crescimento.
Esqueceram de dizer que outro mundo é possível para além do cultivo da cana nestas regiões, a partir da revisão concreta: da intervenção de Estado; da lógica de produção; do conceito de vida.
O que está colocado no projeto de educação das grandes empresas é uma gigantesca máquina do terror em que a produção material da vida aparece invertida e os olhos já não mais devem conseguir visualizar as contradições cotidianas.
Na disputa contra o grande capital, necessitamos retomar o debate, a disputa e a proposição política concreta sobre as seguintes questões: da luta de classes na atualidade; do Estado e da sociedade; agrária e ambiental; do trabalho; do desenvolvimento; e da concepção de vida.
Ou denunciamos estas ilegalidades e anunciamos nosso projeto de classe, ou o futuro que já começou faz alguns séculos no nosso continente, continuará distante de nos pertencer como classe.
Roberta Traspadini é economista, educadora popular e integrante da CP/ES.
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