terça-feira, setembro 06, 2011

A tropa da elite nacional.


A tropa da elite nacional

Reproduzem-se na sociedade brasileira pensamentos que, mesmo distantes da realidade e desprovidos de fundamento, vão se disseminando por cansativa repetição, com a calorosa ajuda da grande mídia e acabam por conquistar mentes e corações dos mais desavisados. Ideias encorpadas pela ideologia dominante delegam ao povo brasileiro a responsabilidade por suas próprias dificuldades cotidianas de sobrevivência, invertendo deliberadamente a lógica concreta das coisas.

Ricardo Alvarez

O pior analfabeto é aquele que sabe ler, mas não lê
Mário Quintana

Desde longa data ouve-se nestas terras que o maior problema do Brasil é o próprio brasileiro. O jeitinho para obter vantagens, a malandragem no trato dos negócios, o desrespeito às regras como a única regra a ser respeitada, àquele que fura a fila, faz pequenos subornos sem corar, comete delitos leves e conta vantagem por isso, enfim, um rosário de desvios que acabam por configurar sua fisionomia social e sua relação com o meio social e o poder público.

Seria tolice dizer que tais situações inexistem, ou mesmo que se trata de uma invenção sem fundamento. Ao contrário, elas são reais e se repetem cotidianamente. A cada encontrão que damos com uma delas logo associamos às coisas ao jeito de ser brasileiro, ou pejorativamente falando: “o zé povinho”.

Na rede mundial de computadores, seja por e-mail, redes sociais, ou qualquer outro mecanismo de comunicação, circulam mensagens com este teor.

Será que tais comportamentos expressam um individualismo tosco, apoiado na premissa do “gosto de levar vantagem em tudo, certo?” ou estamos nós diante de uma condição histórica de formação da sociedade brasileira estruturada numa profunda exploração das classes dominantes sobre mais pobres?

Desde tempos imemoriais a sociedade brasileira constituiu-se forjada no caldeirão da miscigenação. Primeiro foram as populações autóctones (indígenas) assoladas pelo capitalismo europeu nascente, ávido de matérias primas e produtos agrícolas que abastecessem seu pujante mercado interno. A chegada dos colonizadores foi acompanhada de ansiosa exploração dos recursos naturais, apoiada na escravização da mão de obra redundando, não sem surpresas, num genocídio anunciado. Apesar disto, a ideologia dominante não cansou de repetir que os índios eram preguiçosos, não gostavam de trabalhar e até bem pouco tempo atrás os livros didáticos de história ainda ensinavam estas lições.

Os povos europeus, ao contrário, eram civilizados e tecnologicamente avançados, superiores e dotados de saber elevado. Porém a realidade era mais dura: as riquezas acumuladas que financiaram seu desenvolvimento posterior disfarçavam a verdadeira fonte das maldades, como o massacre da população local, da exploração e da escravidão. Ouro manchado de sangue.

Esta deve ter sido a primeira forma de mistificação da realidade, de desvio ideológico cujo papel era reduzir os impactos da barbárie que se praticava por aqui. A partir de então a história oficial passou a ser um instrumento de classe.

A segunda fase da exploração e da violência contra povos, em nome dos mercados e do acúmulo de capitais, se deu com o tráfico de escravos africanos para a América. Novamente a ideologia se fez presente. Após centenas de anos de combate aos quilombos, estupro de mulheres, chibatadas e enforcamentos, trabalho forçado, muito sangue derramado e, principalmente, de luta pela independência e liberdade, outra mentira que veio de cima: a abolição da escravatura brota das mãos de uma mulher nobre e branca, de espírito cândido e generoso, não dos enfrentamentos e mortes de muitos contra a opressão e a submissão.

A história oficial brasileira, escrita sempre pelas classes dominantes, ignora as lutas do povo por pão, terra e liberdade. Ao contrário, quando conquistas ocorrem, estas são sempre doações e cessões dos mais ricos, sensibilizados que estavam pelas condições dos mais pobres. Trata-se de uma visão de mundo ancorada no liberalismo, onde a condição do indivíduo sempre determina o movimento da sociedade (esta uma abstração pura) e os movimentos sociais devem ser reprimidos por desviarem o rumo natural das coisas. Aí nasce o "jeitinho brasileiro", resultante de esmolas individuais concedidas pelas classes mais abastadas e seus representantes, no lugar de direitos coletivamente conquistados.

Outra situação de clara inversão de valores, pois o que se apresenta como traço pejorativo da formação de um povo, na verdade consolida um comportamento de servidão e dependência diante dos mais abastados. Se você não consegue ser atendido no hospital o problema é seu, pois o direito ao serviço situa-se num patamar inferior à sua capacidade de ter amigos certos em lugares certos.

O ciclo da manutenção da pobreza passa pelo desrespeito, ou mesmo inexistência, do direito coletivo em detrimento do favor pessoal, resultando em duas grandes vantagens às elites nacionais: a) a perenização de um estruturado sistema de favores e débitos; b) a consolidação da força política e do poder econômico. Se exite um "jeitinho" titpicamente brasileiro, ele o é muito mais produto desta relação de poder estabelecido do que um deslize de índole. Como a culpa recai sobre a vítima, institui-se a máxima que nosso povo é desprovido de ética.

Com tantos exemplos assim, nossas elites se acostumaram a valorizar outros povos na mesma medida em que desvalorizam o seu próprio. A mistura gerada entre negros, índios e europeus criou uma “gentalha” feia, sem glamour e, o que é pior, pobre. O verdadeiro valor está nas coisas feitas por europeus e norte-americanos.

A avenida paulista, em São Paulo, quase não possui mais nenhum casarão da época dos Barões do Café. Estes acumularam grande riqueza durante a vigência do ciclo e escolheram o espigão que separa as bacias dos rios Tamanduateí e Pinheiros para morar. Um século depois parte de nossa história foi demolida junto com estas construções sob a batuta dos novos ricos. Em seu lugar prédios envidraçados sintetizando a modernidade e o progresso. Se a memória da elite vai para o buraco com esta facilidade, o que dizer de vilas operárias e casas populares?

A arquitetura não foge à regra: nos países temperados é preciso aproveitar o máximo de luz em função das características climáticas e de iluminação (grandes vidraças), aqui reproduzimos o modelo partindo da lógica de que o que é bom para eles também o é para nós, como isso gastamos energia aos montes com ar-condicionados para reduzir o abafa dentro dos prédios.

Destruímos nosso patrimônio histórico sem perdão sob o impulso desta fantasia pseudomodernizante que enxerga no novo sempre o melhor. É o reino da mentalidade colonizada, que engtra em êxtase fotografando castelos medievais preservados do feudalismo europeu, ornados com pau-brasil brasileiro, castiçais de prata argentina e luminárias de ouro boliviano, mas refuta sua própria história.

Há cerca de uma centena de anos atrás, diante do cenário que se avizinhava da eclosão da primeira guerra mundial, muitos imigrantes aportaram no Brasil em busca de paz e trabalho. Foram recebidos num país ainda basicamente agrário e exportador, mas com muita generosidade e calor humano. Nada de segregação e repulsão aos novos moradores, ao contrário. Hoje os líderes europeus, com apoio de parte de sua população que se deixa levar pela ladainha do discurso fácil, fecham as portas para os imigrantes, jogando em suas costas a culpa pela crise que enfrentam, apontam seu dedo contra islâmicos e ovacionando a política de combate ao terror dos EUA. Já o fizeram no passado, em momento histórico diferente, mas em circunstâncias parecidas, deu no que deu: o nazismo conquistou corações e mentes, mas deixou um rastro de ódio entre os homens.

O antropólogo Darcy Ribeiro já havia dissertado em belo livro (O Povo Brasileiro) que nossa grande riqueza é justamente esta mistura de gentes em nossas terras, gerando um povo singular e de grande significado cultural. Nossas elites tem ojeriza dele, gostam de coisas importadas e desgostam desta condição miscigenante, preferem a raça pura, se isolam em condomínios fechados, andam em carros blindados, viajam em helicópteros, fazem compras em Miami, endeusam botox, silicone epersonal trainer, curtem academias de ginástica, valorizam o corpo na mesma medida em que interessam pela vida alheia. Mas nada de livros e leitura. Tirando Mindlin e outros casos esporádicos, não me lembro de conhecer burgueses tupiniquins que cultivem bibliotecas, livros e leitura. Nossa elite é assim mesmo: predatória, submissa e pouco culta.

O mais engraçado é que esta mesma elite que cultiva o efêmero e a superficialidade, não se cansa de reafirmar que a condição social de boa parte dos brasileiros resulta de sua própria incompetência e preguiça. O programa Bolsa-Família é o grande alvo neste sentido, porém mal sabem eles que o programa estimula o capitalismo por irrigar com recursos a base da pirâmide, provocando um efeito em cadeia virtuoso em direção ao pico, justamente onde estão os que fazem beicinho contra o programa. Mal sabem também que o Bolsa-Família não veio para mudar a ordem das coisas, as elites não precisam temer que isto ocorrra, senão ele não teria começado no governo do seu digno representante: FHC.

Numa eleição presidencial nos anos 80 o maior líder da indústria paulista, Mario Amato, então presidente da FIESP, declarou que se um determinado candidato ganhasse as eleições ele deixaria o país. É um pensamento representativo de classe, tipificado pela ideia de ganhar sempre. É a mais digna expressão de uma lógica profundamente gananciosa, são verdadeiros piratas de terra, que navegam nas águas da intransigência quando seu direito de tomar champanhe é supostamente ameaçado.

O que dizer daquele grupo de rapazes que espancou uma trabalhadora num ponto de ônibus no Rio de Janeiro, achando que ela era prostituta? Recordo-me da mãe de um deles dizendo que “eles não poderiam ficar presos nas mesmas celas que bandidos”. Interessante seu conceito de bandido, prisão e crime. Há também o índio Pataxó Galdino, que morreu queimado quando dormia num ponto de ônibus, os rapazes que foram atacados na Avenida Paulista por um grupo que os identificou como homossexuais, os ricos de Higienópolis que não querem os diferenciados passando em frente de suas casas com a estação do metrô, enfim, os exemplos de intolerância e incapacidade de convivência com o diferente são abundantes.

Esta é uma visão de mundo que nasce no seio das elites nacionais e reproduz socialmente como verdade, seja através dos grandes meios de comunicação, de seus representantes no parlamento, no executivo, no judiciário, ou mesmo, através dos ensinamentos escolares.

É o exercício diário de quem se recusa a pagar impostos (sobre grandes fortunas ou transmissão de bens por de hereditariedade), que corrompe o poder público em benefícios pessoais, critica qualquer forma de transferência de renda para camadas mais baixas, é contra a participação popular na gestão pública, reifica o “laissez-faire”, aplaudiu de pé as privatizações, que defendem entusiasticamente a tese de que a pobreza resulta de excessos populacionais (como é pouco culta ainda não descobriu que Malthus já está superado), que não se inquieta diante de pobres que morrem em filas de hospitais desprovidos dos direitos mais elementares.

O jeitinho brasileiro não é, neste contexto, o resultado de um “povinho” que gosta de obter vantagens, mas sim uma opção de acesso aos serviços básicos e essenciais que lhe são historicamente negados, é o pedido diário de benção para os senhores do dinheiro, é o beijo na mão para se conseguir o que lhe era de direito. A elite nacional transforma cidadania em favores, para garantir seus privilégios e manter hordas de miseráveis sob seu domínio.

É até compreensível sua ignorância em relação ao mundo absorta que está em sua pequenez de objetivos, mas ela poderia ao menos ter vergonha de apontar o dedo da culpa para àqueles que são justamente a vítima histórica deste país abissalmente desigual e injusto.

Ricardo Alvarez é geógrafo, professor e editor do site Controvérsia
www.controversia.com.br |www.controversia.com.br/blog

Um comentário :

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A tropa da elite nacional.


A tropa da elite nacional

Reproduzem-se na sociedade brasileira pensamentos que, mesmo distantes da realidade e desprovidos de fundamento, vão se disseminando por cansativa repetição, com a calorosa ajuda da grande mídia e acabam por conquistar mentes e corações dos mais desavisados. Ideias encorpadas pela ideologia dominante delegam ao povo brasileiro a responsabilidade por suas próprias dificuldades cotidianas de sobrevivência, invertendo deliberadamente a lógica concreta das coisas.

Ricardo Alvarez

O pior analfabeto é aquele que sabe ler, mas não lê
Mário Quintana

Desde longa data ouve-se nestas terras que o maior problema do Brasil é o próprio brasileiro. O jeitinho para obter vantagens, a malandragem no trato dos negócios, o desrespeito às regras como a única regra a ser respeitada, àquele que fura a fila, faz pequenos subornos sem corar, comete delitos leves e conta vantagem por isso, enfim, um rosário de desvios que acabam por configurar sua fisionomia social e sua relação com o meio social e o poder público.

Seria tolice dizer que tais situações inexistem, ou mesmo que se trata de uma invenção sem fundamento. Ao contrário, elas são reais e se repetem cotidianamente. A cada encontrão que damos com uma delas logo associamos às coisas ao jeito de ser brasileiro, ou pejorativamente falando: “o zé povinho”.

Na rede mundial de computadores, seja por e-mail, redes sociais, ou qualquer outro mecanismo de comunicação, circulam mensagens com este teor.

Será que tais comportamentos expressam um individualismo tosco, apoiado na premissa do “gosto de levar vantagem em tudo, certo?” ou estamos nós diante de uma condição histórica de formação da sociedade brasileira estruturada numa profunda exploração das classes dominantes sobre mais pobres?

Desde tempos imemoriais a sociedade brasileira constituiu-se forjada no caldeirão da miscigenação. Primeiro foram as populações autóctones (indígenas) assoladas pelo capitalismo europeu nascente, ávido de matérias primas e produtos agrícolas que abastecessem seu pujante mercado interno. A chegada dos colonizadores foi acompanhada de ansiosa exploração dos recursos naturais, apoiada na escravização da mão de obra redundando, não sem surpresas, num genocídio anunciado. Apesar disto, a ideologia dominante não cansou de repetir que os índios eram preguiçosos, não gostavam de trabalhar e até bem pouco tempo atrás os livros didáticos de história ainda ensinavam estas lições.

Os povos europeus, ao contrário, eram civilizados e tecnologicamente avançados, superiores e dotados de saber elevado. Porém a realidade era mais dura: as riquezas acumuladas que financiaram seu desenvolvimento posterior disfarçavam a verdadeira fonte das maldades, como o massacre da população local, da exploração e da escravidão. Ouro manchado de sangue.

Esta deve ter sido a primeira forma de mistificação da realidade, de desvio ideológico cujo papel era reduzir os impactos da barbárie que se praticava por aqui. A partir de então a história oficial passou a ser um instrumento de classe.

A segunda fase da exploração e da violência contra povos, em nome dos mercados e do acúmulo de capitais, se deu com o tráfico de escravos africanos para a América. Novamente a ideologia se fez presente. Após centenas de anos de combate aos quilombos, estupro de mulheres, chibatadas e enforcamentos, trabalho forçado, muito sangue derramado e, principalmente, de luta pela independência e liberdade, outra mentira que veio de cima: a abolição da escravatura brota das mãos de uma mulher nobre e branca, de espírito cândido e generoso, não dos enfrentamentos e mortes de muitos contra a opressão e a submissão.

A história oficial brasileira, escrita sempre pelas classes dominantes, ignora as lutas do povo por pão, terra e liberdade. Ao contrário, quando conquistas ocorrem, estas são sempre doações e cessões dos mais ricos, sensibilizados que estavam pelas condições dos mais pobres. Trata-se de uma visão de mundo ancorada no liberalismo, onde a condição do indivíduo sempre determina o movimento da sociedade (esta uma abstração pura) e os movimentos sociais devem ser reprimidos por desviarem o rumo natural das coisas. Aí nasce o "jeitinho brasileiro", resultante de esmolas individuais concedidas pelas classes mais abastadas e seus representantes, no lugar de direitos coletivamente conquistados.

Outra situação de clara inversão de valores, pois o que se apresenta como traço pejorativo da formação de um povo, na verdade consolida um comportamento de servidão e dependência diante dos mais abastados. Se você não consegue ser atendido no hospital o problema é seu, pois o direito ao serviço situa-se num patamar inferior à sua capacidade de ter amigos certos em lugares certos.

O ciclo da manutenção da pobreza passa pelo desrespeito, ou mesmo inexistência, do direito coletivo em detrimento do favor pessoal, resultando em duas grandes vantagens às elites nacionais: a) a perenização de um estruturado sistema de favores e débitos; b) a consolidação da força política e do poder econômico. Se exite um "jeitinho" titpicamente brasileiro, ele o é muito mais produto desta relação de poder estabelecido do que um deslize de índole. Como a culpa recai sobre a vítima, institui-se a máxima que nosso povo é desprovido de ética.

Com tantos exemplos assim, nossas elites se acostumaram a valorizar outros povos na mesma medida em que desvalorizam o seu próprio. A mistura gerada entre negros, índios e europeus criou uma “gentalha” feia, sem glamour e, o que é pior, pobre. O verdadeiro valor está nas coisas feitas por europeus e norte-americanos.

A avenida paulista, em São Paulo, quase não possui mais nenhum casarão da época dos Barões do Café. Estes acumularam grande riqueza durante a vigência do ciclo e escolheram o espigão que separa as bacias dos rios Tamanduateí e Pinheiros para morar. Um século depois parte de nossa história foi demolida junto com estas construções sob a batuta dos novos ricos. Em seu lugar prédios envidraçados sintetizando a modernidade e o progresso. Se a memória da elite vai para o buraco com esta facilidade, o que dizer de vilas operárias e casas populares?

A arquitetura não foge à regra: nos países temperados é preciso aproveitar o máximo de luz em função das características climáticas e de iluminação (grandes vidraças), aqui reproduzimos o modelo partindo da lógica de que o que é bom para eles também o é para nós, como isso gastamos energia aos montes com ar-condicionados para reduzir o abafa dentro dos prédios.

Destruímos nosso patrimônio histórico sem perdão sob o impulso desta fantasia pseudomodernizante que enxerga no novo sempre o melhor. É o reino da mentalidade colonizada, que engtra em êxtase fotografando castelos medievais preservados do feudalismo europeu, ornados com pau-brasil brasileiro, castiçais de prata argentina e luminárias de ouro boliviano, mas refuta sua própria história.

Há cerca de uma centena de anos atrás, diante do cenário que se avizinhava da eclosão da primeira guerra mundial, muitos imigrantes aportaram no Brasil em busca de paz e trabalho. Foram recebidos num país ainda basicamente agrário e exportador, mas com muita generosidade e calor humano. Nada de segregação e repulsão aos novos moradores, ao contrário. Hoje os líderes europeus, com apoio de parte de sua população que se deixa levar pela ladainha do discurso fácil, fecham as portas para os imigrantes, jogando em suas costas a culpa pela crise que enfrentam, apontam seu dedo contra islâmicos e ovacionando a política de combate ao terror dos EUA. Já o fizeram no passado, em momento histórico diferente, mas em circunstâncias parecidas, deu no que deu: o nazismo conquistou corações e mentes, mas deixou um rastro de ódio entre os homens.

O antropólogo Darcy Ribeiro já havia dissertado em belo livro (O Povo Brasileiro) que nossa grande riqueza é justamente esta mistura de gentes em nossas terras, gerando um povo singular e de grande significado cultural. Nossas elites tem ojeriza dele, gostam de coisas importadas e desgostam desta condição miscigenante, preferem a raça pura, se isolam em condomínios fechados, andam em carros blindados, viajam em helicópteros, fazem compras em Miami, endeusam botox, silicone epersonal trainer, curtem academias de ginástica, valorizam o corpo na mesma medida em que interessam pela vida alheia. Mas nada de livros e leitura. Tirando Mindlin e outros casos esporádicos, não me lembro de conhecer burgueses tupiniquins que cultivem bibliotecas, livros e leitura. Nossa elite é assim mesmo: predatória, submissa e pouco culta.

O mais engraçado é que esta mesma elite que cultiva o efêmero e a superficialidade, não se cansa de reafirmar que a condição social de boa parte dos brasileiros resulta de sua própria incompetência e preguiça. O programa Bolsa-Família é o grande alvo neste sentido, porém mal sabem eles que o programa estimula o capitalismo por irrigar com recursos a base da pirâmide, provocando um efeito em cadeia virtuoso em direção ao pico, justamente onde estão os que fazem beicinho contra o programa. Mal sabem também que o Bolsa-Família não veio para mudar a ordem das coisas, as elites não precisam temer que isto ocorrra, senão ele não teria começado no governo do seu digno representante: FHC.

Numa eleição presidencial nos anos 80 o maior líder da indústria paulista, Mario Amato, então presidente da FIESP, declarou que se um determinado candidato ganhasse as eleições ele deixaria o país. É um pensamento representativo de classe, tipificado pela ideia de ganhar sempre. É a mais digna expressão de uma lógica profundamente gananciosa, são verdadeiros piratas de terra, que navegam nas águas da intransigência quando seu direito de tomar champanhe é supostamente ameaçado.

O que dizer daquele grupo de rapazes que espancou uma trabalhadora num ponto de ônibus no Rio de Janeiro, achando que ela era prostituta? Recordo-me da mãe de um deles dizendo que “eles não poderiam ficar presos nas mesmas celas que bandidos”. Interessante seu conceito de bandido, prisão e crime. Há também o índio Pataxó Galdino, que morreu queimado quando dormia num ponto de ônibus, os rapazes que foram atacados na Avenida Paulista por um grupo que os identificou como homossexuais, os ricos de Higienópolis que não querem os diferenciados passando em frente de suas casas com a estação do metrô, enfim, os exemplos de intolerância e incapacidade de convivência com o diferente são abundantes.

Esta é uma visão de mundo que nasce no seio das elites nacionais e reproduz socialmente como verdade, seja através dos grandes meios de comunicação, de seus representantes no parlamento, no executivo, no judiciário, ou mesmo, através dos ensinamentos escolares.

É o exercício diário de quem se recusa a pagar impostos (sobre grandes fortunas ou transmissão de bens por de hereditariedade), que corrompe o poder público em benefícios pessoais, critica qualquer forma de transferência de renda para camadas mais baixas, é contra a participação popular na gestão pública, reifica o “laissez-faire”, aplaudiu de pé as privatizações, que defendem entusiasticamente a tese de que a pobreza resulta de excessos populacionais (como é pouco culta ainda não descobriu que Malthus já está superado), que não se inquieta diante de pobres que morrem em filas de hospitais desprovidos dos direitos mais elementares.

O jeitinho brasileiro não é, neste contexto, o resultado de um “povinho” que gosta de obter vantagens, mas sim uma opção de acesso aos serviços básicos e essenciais que lhe são historicamente negados, é o pedido diário de benção para os senhores do dinheiro, é o beijo na mão para se conseguir o que lhe era de direito. A elite nacional transforma cidadania em favores, para garantir seus privilégios e manter hordas de miseráveis sob seu domínio.

É até compreensível sua ignorância em relação ao mundo absorta que está em sua pequenez de objetivos, mas ela poderia ao menos ter vergonha de apontar o dedo da culpa para àqueles que são justamente a vítima histórica deste país abissalmente desigual e injusto.

Ricardo Alvarez é geógrafo, professor e editor do site Controvérsia
www.controversia.com.br |www.controversia.com.br/blog

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