Por Sergio Nogueira
O desserviço que a mídia conservadora vem realizando no caso do massacre de 12 crianças em uma escola municipal de Realengo, subúrbio do Rio, por pouco não chega a ser tão aterrador quanto o ato pensado, repensado e premeditado de um assassino. Esculpido ao longo de décadas pela intolerância social, o imaginário das tramas televisivas, o abandono, a solidão e a doença silenciosa, aquele subproduto deste sistema político e econômico avassalador jazia, para os olhos incrédulos de milhões de espectadores, sobre os degraus da escada que subiria para fazer mais vítimas, não fosse a ação corajosa de um policial militar. Por corredores e salas de aulas do pacato colégio carioca, as marcas da insanidade coletiva, concentradas naquele indivíduo alucinado, restam imersas no sangue dos inocentes.
O espetáculo de horror promovido de pronto pelas TVs e rádios e estampado, horas depois, nas capas dos jornalões, assemelha-se à roleta russa que a sociedade joga consigo mesma. Na ânsia de explicar, o quanto antes e da forma mais rasa possível, o ato que, em questão de minutos, atingiu o coração da sociedade brasileira, chegaram a ligar aquele indivíduo ao Islã, produzindo nova onda de repúdio a uma das maiores fontes da fé humana, já desgastada no Ocidente por séculos de cruzadas e guerras santas, atentados e mortes em nome deste ou daquele Deus. Sem responsabilidade alguma, alguém que já não se sabe mais quem, abre a boca para acusar os seguidores do profeta de inspirar ato tão infame. Ninguém, até agora, se retratou.
Em seguida, nos mesmos canais que desinformam a população desde sempre, ao bel-prazer, culpa-se a falta de segurança nas escolas. E o guardinha, assim, passa a ser o culpado por desvario jamais imaginado, até agora, por qualquer brasileiro. Sim, até agora porque, ante a estridência da fama tosca e oblíqua que o episódio mais lamentável da nossa história moderna ganha no noticiário popular, somente um milagre livrará a população brasileira de uma nova tragédia, nos moldes desta ocorrida no Rio. Trata-se da ameaça, agora latente, que sequer existia até o dia 7 de abril de 2011. Outros desvairados, atiçados por um ato de extrema insanidade, seguem nas sombras, prontos a destroçar vidas, famílias, sonhos, esperanças.
O mais grave, ainda, é perceber que a hipocrisia apenas trata de arranjar soluções míopes, com base em explicações ordinárias, para um drama que acompanha a humanidade desde sempre. As crianças que apresentam quaisquer “defeitos de fabricação”, para ser tão simplista quanto os desatinados que assim qualificam os bebês, meninos e meninas portadores de síndromes, deficiências e neuropatias, estas são deixadas muitas vezes ao próprio destino ou, aquelas com mais sorte, conseguem lugar em uma instituição especializada, tão raras quanto o apoio que estas escolas especiais recebem do poder público ou da iniciativa privada.
A realidade perversa, no entanto, é exposta no preconceito silente que reside na maioria da população. Impronunciável, por tamanha sordidez, é tangível o sentimento de repulsa a quem é diferente ou incapaz de se alinhar aos padrões exigidos pela sociedade construída na competição desmesurada e distante da solidariedade. Ou, mais ainda, ele faz parte das brincadeiras das crianças no recreio, no bullyng, nos meninos e meninas desprezados na flor da idade, no desamor, no rígido código social que atinge a todas as camadas da população. São os mesmos padrões que recheiam as novelas das 7h, das 8h, das 9h, os filmes de Hollywood, as revistas destinadas aos pré-adolescentes, adolescentes, jovens adultos e daí em diante.
Para se produzir um ser desumanizado como este, que preferiu matar meninas mais do que meninos, é preciso um esforço muito grande. Não é do dia para a noite que surge um bicho raivoso assim, pronto a levar com ele quantas almas puder. E o mais triste é constatar que os mesmos artífices deste assassino em série são os mesmos que se esforçam ao ponto de fazer do Brasil um dos países com os piores níveis educacionais do mundo. São eles mesmos que infundem a necessidade artificial de se adquirir bugigangas em lugar de livros, celulares da moda em vez de salários dignos aos professores, transgênicos e hambúrgueres ianques em lugar de uma alimentação nacional e saudável. A escola onde ocorreu a tragédia, por exemplo, sofre em seu microcosmo de todas as mazelas vividas pela Educação no país: poucos e mal remunerados mestres, condições pífias de trabalho, formação indigna, futuro incerto.
Diante deste quadro, somente poderia restar uma forma de governo que pratica a eugenia disfarçada e, em toda sua desfaçatez, sufoca aquelas poucas instituições que, heróicas, insistem em tratar os estranhos seres humanos que vieram ao mundo com um gene defeituoso, membros de menos, sensibilidade demais ou uma aparência distante do padrão bonitinho que a mídia elege como representante da estrutura social vigente. Na contramão do discurso fácil, o poder constituído penaliza ao invés de ajudar a uma das mais antigas e renomadas instituições de apoio às crianças portadoras de deficiências físicas e mentais, justamente aquela que cuida dos indivíduos desajustados que, no futuro, candidatam-se ao posto deixado por aquele demente, em Realengo.
A Sociedade Pestalozzi do Brasil, em sua última década de atividades, realizou mais de 1,2 milhão de consultas às crianças que o sistema rejeita e, por isso, ao invés de pedreiros, areia e tijolos, a municipalidade envia fiscais truculentos que, em tom ameaçador, prometem fechar a instituição se, em um prazo mínimo, não for construído um banheiro a mais para atender aos pacientes. Promovem verdadeiras devassas fiscais na administração, capazes de deixar boquiaberto o mais renitente burocrata norte-coreano. Sequer pedem desculpas, depois dos danos causados, por constatar que a administração é séria e competente ao ponto de manter viva uma iniciativa que, fosse gerida na mesma visão mercantilista que dirige os atos públicos, teria encerrado suas atividades há tempos.
A morte das crianças e do matador que, meticulosamente, atirou no tórax e na cabeça de suas vítimas, é um sinal de alerta para o respeito àqueles que dedicam suas vidas a cuidar dos desvalidos. A permanecer o atual quadro de desapreço a estes profissionais e estabelecimentos sérios, que ainda insistem em existir no Brasil, cenas de puro terror, como essas que a mídia usa para atrair cada vez mais audiência, tendem a se tornar apenas nota de rodapé no cotidiano de uma sociedade doente. Para resumir, fica a citação do antropólogo Roberto Albergaria, da Universidade de Paris VII:
“O homem é um animal incerto”.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-sociedade-doente-produz-assassinos-em-serie
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