Camilo Moreno, para o Rebelión
Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata
de disfarçar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de
melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova...
Nosso grito de guerra tem de ser sempre: a revolução permanente!
K. Marx. Mensagem à Liga Comunista, 1850.
“Os setores de esquerda que pretendem reeditar hoje, inclusive com linguagem
marxista, as velhas ilusões reformistas do passado, ou aqueles que fazem um
chamado ao "realismo", ou a construir um "capitalismo nacional", abandonam na
prática o projeto estratégico da revolução a longo prazo e terminam, em última
instância, sendo funcionais à reconstrução da hegemonia capitalista.”
Introdução:
Muitos líderes e analistas de esquerda cometem um grave erro de percepção ao
supervalorizar as mudanças políticas ocorridas na América Latina nos últimos anos. Suas
explicações vão desde aquelas que percebem os triunfos eleitorais da centroesquerda como
"avanços revolucionários", até as que, menos otimistas, afirmam entretanto que a América
Latina oferece novas oportunidades para transformar profundamente as relações de
dependência e miséria privilegiando a via institucional e aproveitando "as portas que se
abriram" desde a democracia burguesa. Isso traz como consequência a subvalorização da
importância da luta extrainstitucional e antissistêmica, da mobilização e organização popular e
da criação de poder alternativo local.
O complexo e contraditório processo que vive a América Latina desde muitos anos requer, no
entanto, análises mais abrangentes para não se deixar enganar pelas ilusões que, ainda que
fazendo chamados à mobilização de massas, coloca a luta eleitoral privilegiadamente como o
único caminho possível e "sensato" para a esquerda.
A esquerda revolucionária tem como desafios aplicar estratégias capazes de construir
verdadeiras alternativas de poder e recuperar a mobilização de massas em decadência. Isto
passa por reconhecer, para além dos triunfalismos, algo que já hoje é evidente: o refluxo da
mobilização social na América Latina e o ressurgir da direita.
Crise do neoliberalismo no início do século e triunfo eleitoral de centroesquerda:
Depois da contraofensiva neoliberal dos anos 90, ao fim da década e início do século, sua
derrota no plano econômico desacreditou a direita tradicional, criou comoções sociais e
produziu uma crise que derrocou vários governos da região por via da mobilização popular: a
revolta derrubou três presidentes no Equador, vários na Argentina e dois na Bolívia. Os
movimentos sociais foram os grandes protagonistas das jornadas rebeldes que deixaram
dezenas de mortos como saldo e puseram temporariamente em xeque a institucionalização
dominante. Indígenas, camponeses, cocaleros, trabalhadores mineiros, piqueteros e massas
urbanas empobrecidas desenvolveram jornadas de protesto social demonstrando em certos
países grande capacidade de ação e vontade de sacrifício.
As revoltas desataram uma crise de institucionalidade que, no entanto, não conseguiu ser
capitalizada pelos movimentos sociais para criar verdadeiras alternativas de poder.
Ainda que de maneira desigual, a crise e os protestos permitiram em certos casos a chegada
ao governo de candidatos de centroesquerda que capitalizaram a revolta social para substituir
a direita tradicional (Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, Equador). Em outros casos surgiram
líderes dos próprios movimentos sociais (Bolívia), e um militar bolivariano que obteve
popularidade por encabeçar um golpe fracassado a um governo corrupto de direita (Venezuela).
Apesar dos matizes (não é o mesmo Venezuela, Bolívia e Equador que o resto da região do cone sul) nenhum dos governos de centroesquerda na região conseguiu desenvolver ou consolidar mudanças estruturais profundas, nem apresentar alternativas reais ao projeto neoliberal. Venezuela é uma notável exceção neste caso, cujo processo revolucionário ainda tem imensos desafios pela frente, e onde seguramente a ação decidida das organizações de base classistas será um fator decisivo no aprofundamento dos avanços.
Os governos de centroesquerda encaminharam a rebeldia popular por vias institucionais,
fizeram um chamado ao "comedimento" e não aproveitaram a capacidade de mobilização
para desenvolver poder alternativo real. Com discurso progressista, estes governos, na
maioria dos casos, desmobilizaram os movimentos sociais, apagaram vários de seus líderes
minando a autonomia e capacidade de resposta destes, ao mesmo tempo em que nomearam
para postos chaves dos ministérios neoliberais ortodoxos para conseguir um equilíbrio de poder e garantir assim a governabilidade.
Política exterior e distanciamento dos EUA: Máscara antiimperialista, fundo neoliberal
Muitas análises de esquerda se concentram na oposição que os novos governos de
centroesquerda fazem à hegemonia Estadunidense: o rechaço à ALCA principalmente é tido
como uma mostra do caráter antiimperialista dos mesmos. Excluindo Cuba e Venezuela, e
ainda que em alguns casos, o rechaço ao estabelecimento ou continuidade das bases
estadunidenses seja uma mostra de dignidade nacional, o distanciamento das políticas
estadunidenses responde melhor a um contexto interno e externo que vale a pena analisar (sobretudo nos países do cone sul): Neste plano externo a diversificação dos mercados internacionais e a alta nos preços das matérias primas no início do século permitiram certa flexibilidade e capacidade de manobra dos governos e subtraíram importância às políticas do FMI e do Banco Mundial; isto criou as condições no plano interno para o surgimento de uma classe agromineradora exportadora local e estrangeira que aproveitou os altos preços das matérias primas para buscar maiores vantagens em outros mercados. Esta classe domina as finanças, exerce pressão sobre os estados, e exige, ao mesmo tempo, junto aos gabinetes de governo, maior liberalização do mercado estadunidense (oposição à ALCA). Na maioria dos casos não se explica, em última análise, uma oposição ao neoliberalismo, mas melhores relações de mercado, mais competitivas e menos unilaterais por parte dos EUA.
Isto evidentemente debilita a política estadunidense acostumada ao saque incondicional e a
ter clientes totalmente submissos aos seus desígnios. Estes governos buscam e firmam
tratados de livre comércio com outras nações mais favoráveis à entrada de seus produtos
(União Européia, países Asiáticos e comércio local e regional). No entanto, ao mesmo tempo
se avança pouco em um projeto verdadeiro de integração solidária (ALBA) e desenvolvimento endógeno.
Fortalecimento da direita, debilitação dos movimentos sociais
Na maioria dos países onde triunfou eleitoralmente a centroesquerda, esta teve que buscar
alianças para conseguir governabilidade. A reprimarização da economia levou estes governos
a basearem sua política econômica na consolidação do setor agrominerador do qual
obtinham grandes dividendos e que lhes permitiam levar a cabo programas sociais tendentesa superar a crise social do início do século. O equilíbrio de poder constituído pela
centroesquerda baseado em suas alianças com os grandes produtores e exportadores
agromineradores e setores financeiros por um lado, e a base eleitoral composta pela classe
trabalhadora urbana e rural de classe média e baixa pelo outro, terminou por deslocar a
correlação de forças rumo à direita agromineradora com muita influência na economia.
A incapacidade para adiantar mudanças estruturais profundas, para modificar as relações de
propriedade da terra, para organizar efetivamente o movimento popular como motor
estratégico de mudança, trouxe como resultado uma debilitação da centroesquerda e um
fortalecimento crescente da direita, agora na ofensiva. Os movimentos sociais se debilitaram,
perderam influência e em alguns casos militantes.
Em resumo, os governos de centroesquerda, por falta de vontade ou incapacidade,
adiantaram uma "revolução passiva" funcional à sobrevivência do sistema capitalista cuja
crise orgânica no início do século era evidente. Isto é, com consignas progressistas
ressignificadas (mudando algo, para que nada mude), administraram a crise neoliberal,
aceitaram as engrenagens do sistema, e devolveram a legitimidade às instituições. Em última
instância, conscientes ou não, reconstruíram a hegemonia dominante e abriram espaço para
o ressurgimento de direitas.
A direita retoma a ofensiva
Ao contrário da esquerda tradicional que somente se mobiliza em tempos de campanha
eleitoral e privilegia a luta parlamentar, a direita em mudança, com seus grandes recursos,
utiliza todos os meios ao seu alcance para recuperar sua hegemonia. Em todos os países
controla os grandes meios de comunicação que desenvolvem fenômenos midiáticos pró
fascistas (Colômbia), campanhas de descrédito multimilionários (Venezuela, Equador); tem
desenvolvido projetos separatistas (Bolívia) onde a oligarquia agromineradora controla várias
províncias ricas em recursos; tem promovido iguais projetos no estado de Zulia (Venezuela),
com a infiltração crescente de grupos paramilitares colombianos, e em Guayaquil (Equador).
No Brasil, a oligarquia agroexportadora, os imensos investimentos estrangeiros em
megaprojetos de agrocombustíveis e exportação agrícola, com a cumplicidade do governo,
têm forçado o êxodo de milhares de camponeses, debilitado e perseguido aos Sem Terra
(MST) e desmatado milhões de hectares. Na Argentina, a oligarquia agrária tem mobilizado
milhares de pessoas em uma paralisação que buscava concessões sobre os impostos de
exportação governamentais.
Mesmo assim, a direita tem conseguido constituir uma base social forte em vários países e
tem combinado a luta parlamentar com a mobilização das ruas de maneira efetiva. Tem
utilizado a mobilização massiva para consolidar projetos de ultradireita (Colômbia), avançar
sobre campanhas contra as políticas progressistas (referendo na Venezuela), bloquear
estradas e parar a economia (Argentina) e consolidar projetos separatistas (Bolívia).
Na maioria dos países a embaixada estadunidense e agências como a National Endowment
for Democracy (NED, Fundação Nacional para a Democracia em português) têm gastado
milhares de dólares para financiar partidos de oposição, dar assessoria sobre propaganda
eleitoral, promover candidatos de direita e desestabilizar governos adversários de seus
interesses, ao mesmo tempo em que reativam a IV Frota e dão milhões de dólares em ajuda
militar a governos terroristas como o colombiano.
Da mesma forma, a direita tem promovido a violência das ruas e o terrorismo em vários
países. Tem criado grupos de choque para fustigar simpatizantes do governo central na
Bolívia e Venezuela, grupos armados privados para retirar de seus lugares camponeses no
Brasil e Colômbia, e consolidar assim megaprojetos agromineradores e energéticos.
O mito do reformismo: Novas roupagens, velhas ilusões
Ao contrário do que sucedeu com a socialdemocracia européia de finais do século XIX e das
primeiras seis décadas do século XX, em países beneficiados por um desenvolvimento
econômico, político e social capitalista baseado na exploração colonial e neocolonial, que lhes
permitiu acumular excedentes e redistribuir uma parte deles entre os grupos sociais
subalternos, na América Latina a transnacionalização e desregularização das economias, sua
crescente dependência no que diz respeito ao capital financeiro internacional, e à Nova
Ordem Mundial imposta, criou um mecanismo de segurança que restringia ainda mais aos
governantes a tomada de decisões de maneira autônoma ou o desenvolvimento de projetos
de reforma progressista. Assim mesmo, depois da pacificação e a derrota política sofrida pela
esquerda nas décadas anteriores, onde se instauraram ditaduras de "segurança nacional" e o
imperialismo usou a intervenção direta e a luta contrainsurgente para destruir os movimentos
revolucionários dos anos sessenta, setenta, abriu-se nos noventa um cenário onde o
imperialismo reconstruiu a hegemonia burguesa, instaurando a "democracia neoliberal" como
forma única de governo na região.
Desta maneira, o imperialismo pode "tolerar" certos governos de centroesquerda, sempre e
quando respeitem as regras do jogo, posto que pode garantir que, ainda que nas urnas se
vote por um candidato de esquerda, a economia sempre estará sujeita às políticas de
mercado. Isto restringe enormemente as possibilidades de levar a cabo reformas
progressistas na região. Os governos de centroesquerda têm enorme dificuldade para
implementar mudanças de fundo, redistribuição de terras e em poucos casos
renacionalização de empresas. As elites agromineradoras se negam a compartilhar ou
redistribuir seus enormes dividendos obtidos dos altos preços das matérias primas e
pressionam os governos para desregulamentar a economia e aprofundar o neoliberalismo. Ao
mesmo tempo, o imperialismo segue desenvolvendo uma política contrainsurgente na
Colômbia e ameaçando com uma intervenção na Venezuela, onde a recuperação da empresa
estatal petroleira tem permitido ao governo levar a cabo projetos alternativos "intoleráveis"
para os poderosos.
Em resumo, nem hoje, nem nunca, existiram as condições para adiantar na América Latina
um projeto reformista equiparável ao da socialdemocracia européia (nem sequer na etapa
desenvolvimentista da metade do século passado). Mais ainda, reformas progressistas
básicas de hoje se chocam com o obstáculo da hegemonia neoliberal.
Os setores de esquerda que pretendem reeditar hoje, inclusive com linguagem marxista, as
velhas ilusões reformistas do passado, ou aqueles que fazem um chamado ao "realismo", ou
a construir um "capitalismo nacional", abandonam na prática o projeto estratégico da
revolução a longo prazo e terminam, em última instância, sendo funcionais à reconstrução da
hegemonia capitalista.
Os desafios da esquerda revolucionária: construção de poder alternativo, luta pela hegemonia socialista
A relação entre a estratégia e a tática políticas tem sido sempre um problema queem gerado
debates na esquerda através da história. No entanto, a história mesmo tem demonstrado que
os movimentos políticos de esquerda exitosos têm conseguido perceber os momentos táticos
em sua relação dialética com o objetivo estratégico (sem nunca perdê-lo de vista); têm
presente sempre a categoria de totalidade na hora de analisar as tarefas políticas imediatas;
têm percebido, para além dos fenômenos superficiais do momento, os aspectos gerais de
tendência de uma época, e têm se preocupado em todos os casos em incentivar a iniciativa
política direta do campo popular como motor de transformação revolucionária.
Na prática, no entanto, muitos movimentos políticos se perdem nas tarefas do dia a dia, caem
na rotina, tendem a desligar-se dos movimentos sociais, e pouco a pouco se deixam arrastar
pela chantagem institucional.
Se a esquerda revolucionária se caracteriza por difundir o socialismo como a alternativa
política a ser conquistada pelo campo popular, por apresentar a luta pelo poder como o
objetivo estratégico a alcançar, na maioria dos casos, entretanto, essa estratégia prática se
dilui de fato. Por exemplo, se um objetivo primordial para avançar sobre o projeto
revolucionário é conseguir uma abertura democrática nacional, a esquerda se perde nas
tarefas mais ou menos imediatas da luta eleitoral-parlamentar ou nas coalizões eleitorais; não
as percebe na prática como um momento tático, ainda que importante em certos casos,
sempre dependente de uma totalidade mais abrangente da luta social: descuida ou abandona
a criação de poder alternativo extrainstitucional, a organização e mobilização popular, e em
última análise, a luta antissistêmica e a organização revolucionária.
Desde a institucionalidade burguesa é impossível construir uma contra-hegemonia socialista.
Ainda que, tal como o percebia Gramsci, os espaços da democracia burguesa sejam um
campo de batalha que podem permitir ganhar certas posições ("guerra de posições"), a
criação e consolidação de uma hegemonia socialista se desenvolvem principalmente a partir
da organização e da luta social.
A educação e organização política de base, o impulso e reconstrução dos movimentos
sociais, a articulação das lutas parciais rumo aos objetivos comuns, a luta pela hegemonia, o
desenvolvimento de poder dual (poder local alternativo que dispute o poder com a burguesia)
e a relação indissolúvel entre dirigentes e movimentos sociais serão fatores decisivos que
permitirão sacudir a correlação de forças a favor do campo popular e consolidar projetos
alternativos duradouros.
Na atualidade, os crescentes custos no nível de vida da população, a crise alimentar produto
dos nefastos projetos de agrocombustíveis, a crise mundial capitalista e o crescente
descontentamento popular são condições que possibilitam retomar a ofensiva, sempre e
quando a esquerda revolucionária seja capaz de organizar o campo popular, para além da
luta eleitoral, e de impulsionar a rebeldia rumo à luta pelo socialismo.
(Traduzido por Roberta Moratori)
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terça-feira, fevereiro 23, 2010
América Latina e os desafios da esquerda revolucionária
Camilo Moreno, para o Rebelión
Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata
de disfarçar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de
melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova...
Nosso grito de guerra tem de ser sempre: a revolução permanente!
K. Marx. Mensagem à Liga Comunista, 1850.
“Os setores de esquerda que pretendem reeditar hoje, inclusive com linguagem
marxista, as velhas ilusões reformistas do passado, ou aqueles que fazem um
chamado ao "realismo", ou a construir um "capitalismo nacional", abandonam na
prática o projeto estratégico da revolução a longo prazo e terminam, em última
instância, sendo funcionais à reconstrução da hegemonia capitalista.”
Introdução:
Muitos líderes e analistas de esquerda cometem um grave erro de percepção ao
supervalorizar as mudanças políticas ocorridas na América Latina nos últimos anos. Suas
explicações vão desde aquelas que percebem os triunfos eleitorais da centroesquerda como
"avanços revolucionários", até as que, menos otimistas, afirmam entretanto que a América
Latina oferece novas oportunidades para transformar profundamente as relações de
dependência e miséria privilegiando a via institucional e aproveitando "as portas que se
abriram" desde a democracia burguesa. Isso traz como consequência a subvalorização da
importância da luta extrainstitucional e antissistêmica, da mobilização e organização popular e
da criação de poder alternativo local.
O complexo e contraditório processo que vive a América Latina desde muitos anos requer, no
entanto, análises mais abrangentes para não se deixar enganar pelas ilusões que, ainda que
fazendo chamados à mobilização de massas, coloca a luta eleitoral privilegiadamente como o
único caminho possível e "sensato" para a esquerda.
A esquerda revolucionária tem como desafios aplicar estratégias capazes de construir
verdadeiras alternativas de poder e recuperar a mobilização de massas em decadência. Isto
passa por reconhecer, para além dos triunfalismos, algo que já hoje é evidente: o refluxo da
mobilização social na América Latina e o ressurgir da direita.
Crise do neoliberalismo no início do século e triunfo eleitoral de centroesquerda:
Depois da contraofensiva neoliberal dos anos 90, ao fim da década e início do século, sua
derrota no plano econômico desacreditou a direita tradicional, criou comoções sociais e
produziu uma crise que derrocou vários governos da região por via da mobilização popular: a
revolta derrubou três presidentes no Equador, vários na Argentina e dois na Bolívia. Os
movimentos sociais foram os grandes protagonistas das jornadas rebeldes que deixaram
dezenas de mortos como saldo e puseram temporariamente em xeque a institucionalização
dominante. Indígenas, camponeses, cocaleros, trabalhadores mineiros, piqueteros e massas
urbanas empobrecidas desenvolveram jornadas de protesto social demonstrando em certos
países grande capacidade de ação e vontade de sacrifício.
As revoltas desataram uma crise de institucionalidade que, no entanto, não conseguiu ser
capitalizada pelos movimentos sociais para criar verdadeiras alternativas de poder.
Ainda que de maneira desigual, a crise e os protestos permitiram em certos casos a chegada
ao governo de candidatos de centroesquerda que capitalizaram a revolta social para substituir
a direita tradicional (Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, Equador). Em outros casos surgiram
líderes dos próprios movimentos sociais (Bolívia), e um militar bolivariano que obteve
popularidade por encabeçar um golpe fracassado a um governo corrupto de direita (Venezuela).
Apesar dos matizes (não é o mesmo Venezuela, Bolívia e Equador que o resto da região do cone sul) nenhum dos governos de centroesquerda na região conseguiu desenvolver ou consolidar mudanças estruturais profundas, nem apresentar alternativas reais ao projeto neoliberal. Venezuela é uma notável exceção neste caso, cujo processo revolucionário ainda tem imensos desafios pela frente, e onde seguramente a ação decidida das organizações de base classistas será um fator decisivo no aprofundamento dos avanços.
Os governos de centroesquerda encaminharam a rebeldia popular por vias institucionais,
fizeram um chamado ao "comedimento" e não aproveitaram a capacidade de mobilização
para desenvolver poder alternativo real. Com discurso progressista, estes governos, na
maioria dos casos, desmobilizaram os movimentos sociais, apagaram vários de seus líderes
minando a autonomia e capacidade de resposta destes, ao mesmo tempo em que nomearam
para postos chaves dos ministérios neoliberais ortodoxos para conseguir um equilíbrio de poder e garantir assim a governabilidade.
Política exterior e distanciamento dos EUA: Máscara antiimperialista, fundo neoliberal
Muitas análises de esquerda se concentram na oposição que os novos governos de
centroesquerda fazem à hegemonia Estadunidense: o rechaço à ALCA principalmente é tido
como uma mostra do caráter antiimperialista dos mesmos. Excluindo Cuba e Venezuela, e
ainda que em alguns casos, o rechaço ao estabelecimento ou continuidade das bases
estadunidenses seja uma mostra de dignidade nacional, o distanciamento das políticas
estadunidenses responde melhor a um contexto interno e externo que vale a pena analisar (sobretudo nos países do cone sul): Neste plano externo a diversificação dos mercados internacionais e a alta nos preços das matérias primas no início do século permitiram certa flexibilidade e capacidade de manobra dos governos e subtraíram importância às políticas do FMI e do Banco Mundial; isto criou as condições no plano interno para o surgimento de uma classe agromineradora exportadora local e estrangeira que aproveitou os altos preços das matérias primas para buscar maiores vantagens em outros mercados. Esta classe domina as finanças, exerce pressão sobre os estados, e exige, ao mesmo tempo, junto aos gabinetes de governo, maior liberalização do mercado estadunidense (oposição à ALCA). Na maioria dos casos não se explica, em última análise, uma oposição ao neoliberalismo, mas melhores relações de mercado, mais competitivas e menos unilaterais por parte dos EUA.
Isto evidentemente debilita a política estadunidense acostumada ao saque incondicional e a
ter clientes totalmente submissos aos seus desígnios. Estes governos buscam e firmam
tratados de livre comércio com outras nações mais favoráveis à entrada de seus produtos
(União Européia, países Asiáticos e comércio local e regional). No entanto, ao mesmo tempo
se avança pouco em um projeto verdadeiro de integração solidária (ALBA) e desenvolvimento endógeno.
Fortalecimento da direita, debilitação dos movimentos sociais
Na maioria dos países onde triunfou eleitoralmente a centroesquerda, esta teve que buscar
alianças para conseguir governabilidade. A reprimarização da economia levou estes governos
a basearem sua política econômica na consolidação do setor agrominerador do qual
obtinham grandes dividendos e que lhes permitiam levar a cabo programas sociais tendentesa superar a crise social do início do século. O equilíbrio de poder constituído pela
centroesquerda baseado em suas alianças com os grandes produtores e exportadores
agromineradores e setores financeiros por um lado, e a base eleitoral composta pela classe
trabalhadora urbana e rural de classe média e baixa pelo outro, terminou por deslocar a
correlação de forças rumo à direita agromineradora com muita influência na economia.
A incapacidade para adiantar mudanças estruturais profundas, para modificar as relações de
propriedade da terra, para organizar efetivamente o movimento popular como motor
estratégico de mudança, trouxe como resultado uma debilitação da centroesquerda e um
fortalecimento crescente da direita, agora na ofensiva. Os movimentos sociais se debilitaram,
perderam influência e em alguns casos militantes.
Em resumo, os governos de centroesquerda, por falta de vontade ou incapacidade,
adiantaram uma "revolução passiva" funcional à sobrevivência do sistema capitalista cuja
crise orgânica no início do século era evidente. Isto é, com consignas progressistas
ressignificadas (mudando algo, para que nada mude), administraram a crise neoliberal,
aceitaram as engrenagens do sistema, e devolveram a legitimidade às instituições. Em última
instância, conscientes ou não, reconstruíram a hegemonia dominante e abriram espaço para
o ressurgimento de direitas.
A direita retoma a ofensiva
Ao contrário da esquerda tradicional que somente se mobiliza em tempos de campanha
eleitoral e privilegia a luta parlamentar, a direita em mudança, com seus grandes recursos,
utiliza todos os meios ao seu alcance para recuperar sua hegemonia. Em todos os países
controla os grandes meios de comunicação que desenvolvem fenômenos midiáticos pró
fascistas (Colômbia), campanhas de descrédito multimilionários (Venezuela, Equador); tem
desenvolvido projetos separatistas (Bolívia) onde a oligarquia agromineradora controla várias
províncias ricas em recursos; tem promovido iguais projetos no estado de Zulia (Venezuela),
com a infiltração crescente de grupos paramilitares colombianos, e em Guayaquil (Equador).
No Brasil, a oligarquia agroexportadora, os imensos investimentos estrangeiros em
megaprojetos de agrocombustíveis e exportação agrícola, com a cumplicidade do governo,
têm forçado o êxodo de milhares de camponeses, debilitado e perseguido aos Sem Terra
(MST) e desmatado milhões de hectares. Na Argentina, a oligarquia agrária tem mobilizado
milhares de pessoas em uma paralisação que buscava concessões sobre os impostos de
exportação governamentais.
Mesmo assim, a direita tem conseguido constituir uma base social forte em vários países e
tem combinado a luta parlamentar com a mobilização das ruas de maneira efetiva. Tem
utilizado a mobilização massiva para consolidar projetos de ultradireita (Colômbia), avançar
sobre campanhas contra as políticas progressistas (referendo na Venezuela), bloquear
estradas e parar a economia (Argentina) e consolidar projetos separatistas (Bolívia).
Na maioria dos países a embaixada estadunidense e agências como a National Endowment
for Democracy (NED, Fundação Nacional para a Democracia em português) têm gastado
milhares de dólares para financiar partidos de oposição, dar assessoria sobre propaganda
eleitoral, promover candidatos de direita e desestabilizar governos adversários de seus
interesses, ao mesmo tempo em que reativam a IV Frota e dão milhões de dólares em ajuda
militar a governos terroristas como o colombiano.
Da mesma forma, a direita tem promovido a violência das ruas e o terrorismo em vários
países. Tem criado grupos de choque para fustigar simpatizantes do governo central na
Bolívia e Venezuela, grupos armados privados para retirar de seus lugares camponeses no
Brasil e Colômbia, e consolidar assim megaprojetos agromineradores e energéticos.
O mito do reformismo: Novas roupagens, velhas ilusões
Ao contrário do que sucedeu com a socialdemocracia européia de finais do século XIX e das
primeiras seis décadas do século XX, em países beneficiados por um desenvolvimento
econômico, político e social capitalista baseado na exploração colonial e neocolonial, que lhes
permitiu acumular excedentes e redistribuir uma parte deles entre os grupos sociais
subalternos, na América Latina a transnacionalização e desregularização das economias, sua
crescente dependência no que diz respeito ao capital financeiro internacional, e à Nova
Ordem Mundial imposta, criou um mecanismo de segurança que restringia ainda mais aos
governantes a tomada de decisões de maneira autônoma ou o desenvolvimento de projetos
de reforma progressista. Assim mesmo, depois da pacificação e a derrota política sofrida pela
esquerda nas décadas anteriores, onde se instauraram ditaduras de "segurança nacional" e o
imperialismo usou a intervenção direta e a luta contrainsurgente para destruir os movimentos
revolucionários dos anos sessenta, setenta, abriu-se nos noventa um cenário onde o
imperialismo reconstruiu a hegemonia burguesa, instaurando a "democracia neoliberal" como
forma única de governo na região.
Desta maneira, o imperialismo pode "tolerar" certos governos de centroesquerda, sempre e
quando respeitem as regras do jogo, posto que pode garantir que, ainda que nas urnas se
vote por um candidato de esquerda, a economia sempre estará sujeita às políticas de
mercado. Isto restringe enormemente as possibilidades de levar a cabo reformas
progressistas na região. Os governos de centroesquerda têm enorme dificuldade para
implementar mudanças de fundo, redistribuição de terras e em poucos casos
renacionalização de empresas. As elites agromineradoras se negam a compartilhar ou
redistribuir seus enormes dividendos obtidos dos altos preços das matérias primas e
pressionam os governos para desregulamentar a economia e aprofundar o neoliberalismo. Ao
mesmo tempo, o imperialismo segue desenvolvendo uma política contrainsurgente na
Colômbia e ameaçando com uma intervenção na Venezuela, onde a recuperação da empresa
estatal petroleira tem permitido ao governo levar a cabo projetos alternativos "intoleráveis"
para os poderosos.
Em resumo, nem hoje, nem nunca, existiram as condições para adiantar na América Latina
um projeto reformista equiparável ao da socialdemocracia européia (nem sequer na etapa
desenvolvimentista da metade do século passado). Mais ainda, reformas progressistas
básicas de hoje se chocam com o obstáculo da hegemonia neoliberal.
Os setores de esquerda que pretendem reeditar hoje, inclusive com linguagem marxista, as
velhas ilusões reformistas do passado, ou aqueles que fazem um chamado ao "realismo", ou
a construir um "capitalismo nacional", abandonam na prática o projeto estratégico da
revolução a longo prazo e terminam, em última instância, sendo funcionais à reconstrução da
hegemonia capitalista.
Os desafios da esquerda revolucionária: construção de poder alternativo, luta pela hegemonia socialista
A relação entre a estratégia e a tática políticas tem sido sempre um problema queem gerado
debates na esquerda através da história. No entanto, a história mesmo tem demonstrado que
os movimentos políticos de esquerda exitosos têm conseguido perceber os momentos táticos
em sua relação dialética com o objetivo estratégico (sem nunca perdê-lo de vista); têm
presente sempre a categoria de totalidade na hora de analisar as tarefas políticas imediatas;
têm percebido, para além dos fenômenos superficiais do momento, os aspectos gerais de
tendência de uma época, e têm se preocupado em todos os casos em incentivar a iniciativa
política direta do campo popular como motor de transformação revolucionária.
Na prática, no entanto, muitos movimentos políticos se perdem nas tarefas do dia a dia, caem
na rotina, tendem a desligar-se dos movimentos sociais, e pouco a pouco se deixam arrastar
pela chantagem institucional.
Se a esquerda revolucionária se caracteriza por difundir o socialismo como a alternativa
política a ser conquistada pelo campo popular, por apresentar a luta pelo poder como o
objetivo estratégico a alcançar, na maioria dos casos, entretanto, essa estratégia prática se
dilui de fato. Por exemplo, se um objetivo primordial para avançar sobre o projeto
revolucionário é conseguir uma abertura democrática nacional, a esquerda se perde nas
tarefas mais ou menos imediatas da luta eleitoral-parlamentar ou nas coalizões eleitorais; não
as percebe na prática como um momento tático, ainda que importante em certos casos,
sempre dependente de uma totalidade mais abrangente da luta social: descuida ou abandona
a criação de poder alternativo extrainstitucional, a organização e mobilização popular, e em
última análise, a luta antissistêmica e a organização revolucionária.
Desde a institucionalidade burguesa é impossível construir uma contra-hegemonia socialista.
Ainda que, tal como o percebia Gramsci, os espaços da democracia burguesa sejam um
campo de batalha que podem permitir ganhar certas posições ("guerra de posições"), a
criação e consolidação de uma hegemonia socialista se desenvolvem principalmente a partir
da organização e da luta social.
A educação e organização política de base, o impulso e reconstrução dos movimentos
sociais, a articulação das lutas parciais rumo aos objetivos comuns, a luta pela hegemonia, o
desenvolvimento de poder dual (poder local alternativo que dispute o poder com a burguesia)
e a relação indissolúvel entre dirigentes e movimentos sociais serão fatores decisivos que
permitirão sacudir a correlação de forças a favor do campo popular e consolidar projetos
alternativos duradouros.
Na atualidade, os crescentes custos no nível de vida da população, a crise alimentar produto
dos nefastos projetos de agrocombustíveis, a crise mundial capitalista e o crescente
descontentamento popular são condições que possibilitam retomar a ofensiva, sempre e
quando a esquerda revolucionária seja capaz de organizar o campo popular, para além da
luta eleitoral, e de impulsionar a rebeldia rumo à luta pelo socialismo.
(Traduzido por Roberta Moratori)
Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata
de disfarçar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de
melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova...
Nosso grito de guerra tem de ser sempre: a revolução permanente!
K. Marx. Mensagem à Liga Comunista, 1850.
“Os setores de esquerda que pretendem reeditar hoje, inclusive com linguagem
marxista, as velhas ilusões reformistas do passado, ou aqueles que fazem um
chamado ao "realismo", ou a construir um "capitalismo nacional", abandonam na
prática o projeto estratégico da revolução a longo prazo e terminam, em última
instância, sendo funcionais à reconstrução da hegemonia capitalista.”
Introdução:
Muitos líderes e analistas de esquerda cometem um grave erro de percepção ao
supervalorizar as mudanças políticas ocorridas na América Latina nos últimos anos. Suas
explicações vão desde aquelas que percebem os triunfos eleitorais da centroesquerda como
"avanços revolucionários", até as que, menos otimistas, afirmam entretanto que a América
Latina oferece novas oportunidades para transformar profundamente as relações de
dependência e miséria privilegiando a via institucional e aproveitando "as portas que se
abriram" desde a democracia burguesa. Isso traz como consequência a subvalorização da
importância da luta extrainstitucional e antissistêmica, da mobilização e organização popular e
da criação de poder alternativo local.
O complexo e contraditório processo que vive a América Latina desde muitos anos requer, no
entanto, análises mais abrangentes para não se deixar enganar pelas ilusões que, ainda que
fazendo chamados à mobilização de massas, coloca a luta eleitoral privilegiadamente como o
único caminho possível e "sensato" para a esquerda.
A esquerda revolucionária tem como desafios aplicar estratégias capazes de construir
verdadeiras alternativas de poder e recuperar a mobilização de massas em decadência. Isto
passa por reconhecer, para além dos triunfalismos, algo que já hoje é evidente: o refluxo da
mobilização social na América Latina e o ressurgir da direita.
Crise do neoliberalismo no início do século e triunfo eleitoral de centroesquerda:
Depois da contraofensiva neoliberal dos anos 90, ao fim da década e início do século, sua
derrota no plano econômico desacreditou a direita tradicional, criou comoções sociais e
produziu uma crise que derrocou vários governos da região por via da mobilização popular: a
revolta derrubou três presidentes no Equador, vários na Argentina e dois na Bolívia. Os
movimentos sociais foram os grandes protagonistas das jornadas rebeldes que deixaram
dezenas de mortos como saldo e puseram temporariamente em xeque a institucionalização
dominante. Indígenas, camponeses, cocaleros, trabalhadores mineiros, piqueteros e massas
urbanas empobrecidas desenvolveram jornadas de protesto social demonstrando em certos
países grande capacidade de ação e vontade de sacrifício.
As revoltas desataram uma crise de institucionalidade que, no entanto, não conseguiu ser
capitalizada pelos movimentos sociais para criar verdadeiras alternativas de poder.
Ainda que de maneira desigual, a crise e os protestos permitiram em certos casos a chegada
ao governo de candidatos de centroesquerda que capitalizaram a revolta social para substituir
a direita tradicional (Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, Equador). Em outros casos surgiram
líderes dos próprios movimentos sociais (Bolívia), e um militar bolivariano que obteve
popularidade por encabeçar um golpe fracassado a um governo corrupto de direita (Venezuela).
Apesar dos matizes (não é o mesmo Venezuela, Bolívia e Equador que o resto da região do cone sul) nenhum dos governos de centroesquerda na região conseguiu desenvolver ou consolidar mudanças estruturais profundas, nem apresentar alternativas reais ao projeto neoliberal. Venezuela é uma notável exceção neste caso, cujo processo revolucionário ainda tem imensos desafios pela frente, e onde seguramente a ação decidida das organizações de base classistas será um fator decisivo no aprofundamento dos avanços.
Os governos de centroesquerda encaminharam a rebeldia popular por vias institucionais,
fizeram um chamado ao "comedimento" e não aproveitaram a capacidade de mobilização
para desenvolver poder alternativo real. Com discurso progressista, estes governos, na
maioria dos casos, desmobilizaram os movimentos sociais, apagaram vários de seus líderes
minando a autonomia e capacidade de resposta destes, ao mesmo tempo em que nomearam
para postos chaves dos ministérios neoliberais ortodoxos para conseguir um equilíbrio de poder e garantir assim a governabilidade.
Política exterior e distanciamento dos EUA: Máscara antiimperialista, fundo neoliberal
Muitas análises de esquerda se concentram na oposição que os novos governos de
centroesquerda fazem à hegemonia Estadunidense: o rechaço à ALCA principalmente é tido
como uma mostra do caráter antiimperialista dos mesmos. Excluindo Cuba e Venezuela, e
ainda que em alguns casos, o rechaço ao estabelecimento ou continuidade das bases
estadunidenses seja uma mostra de dignidade nacional, o distanciamento das políticas
estadunidenses responde melhor a um contexto interno e externo que vale a pena analisar (sobretudo nos países do cone sul): Neste plano externo a diversificação dos mercados internacionais e a alta nos preços das matérias primas no início do século permitiram certa flexibilidade e capacidade de manobra dos governos e subtraíram importância às políticas do FMI e do Banco Mundial; isto criou as condições no plano interno para o surgimento de uma classe agromineradora exportadora local e estrangeira que aproveitou os altos preços das matérias primas para buscar maiores vantagens em outros mercados. Esta classe domina as finanças, exerce pressão sobre os estados, e exige, ao mesmo tempo, junto aos gabinetes de governo, maior liberalização do mercado estadunidense (oposição à ALCA). Na maioria dos casos não se explica, em última análise, uma oposição ao neoliberalismo, mas melhores relações de mercado, mais competitivas e menos unilaterais por parte dos EUA.
Isto evidentemente debilita a política estadunidense acostumada ao saque incondicional e a
ter clientes totalmente submissos aos seus desígnios. Estes governos buscam e firmam
tratados de livre comércio com outras nações mais favoráveis à entrada de seus produtos
(União Européia, países Asiáticos e comércio local e regional). No entanto, ao mesmo tempo
se avança pouco em um projeto verdadeiro de integração solidária (ALBA) e desenvolvimento endógeno.
Fortalecimento da direita, debilitação dos movimentos sociais
Na maioria dos países onde triunfou eleitoralmente a centroesquerda, esta teve que buscar
alianças para conseguir governabilidade. A reprimarização da economia levou estes governos
a basearem sua política econômica na consolidação do setor agrominerador do qual
obtinham grandes dividendos e que lhes permitiam levar a cabo programas sociais tendentesa superar a crise social do início do século. O equilíbrio de poder constituído pela
centroesquerda baseado em suas alianças com os grandes produtores e exportadores
agromineradores e setores financeiros por um lado, e a base eleitoral composta pela classe
trabalhadora urbana e rural de classe média e baixa pelo outro, terminou por deslocar a
correlação de forças rumo à direita agromineradora com muita influência na economia.
A incapacidade para adiantar mudanças estruturais profundas, para modificar as relações de
propriedade da terra, para organizar efetivamente o movimento popular como motor
estratégico de mudança, trouxe como resultado uma debilitação da centroesquerda e um
fortalecimento crescente da direita, agora na ofensiva. Os movimentos sociais se debilitaram,
perderam influência e em alguns casos militantes.
Em resumo, os governos de centroesquerda, por falta de vontade ou incapacidade,
adiantaram uma "revolução passiva" funcional à sobrevivência do sistema capitalista cuja
crise orgânica no início do século era evidente. Isto é, com consignas progressistas
ressignificadas (mudando algo, para que nada mude), administraram a crise neoliberal,
aceitaram as engrenagens do sistema, e devolveram a legitimidade às instituições. Em última
instância, conscientes ou não, reconstruíram a hegemonia dominante e abriram espaço para
o ressurgimento de direitas.
A direita retoma a ofensiva
Ao contrário da esquerda tradicional que somente se mobiliza em tempos de campanha
eleitoral e privilegia a luta parlamentar, a direita em mudança, com seus grandes recursos,
utiliza todos os meios ao seu alcance para recuperar sua hegemonia. Em todos os países
controla os grandes meios de comunicação que desenvolvem fenômenos midiáticos pró
fascistas (Colômbia), campanhas de descrédito multimilionários (Venezuela, Equador); tem
desenvolvido projetos separatistas (Bolívia) onde a oligarquia agromineradora controla várias
províncias ricas em recursos; tem promovido iguais projetos no estado de Zulia (Venezuela),
com a infiltração crescente de grupos paramilitares colombianos, e em Guayaquil (Equador).
No Brasil, a oligarquia agroexportadora, os imensos investimentos estrangeiros em
megaprojetos de agrocombustíveis e exportação agrícola, com a cumplicidade do governo,
têm forçado o êxodo de milhares de camponeses, debilitado e perseguido aos Sem Terra
(MST) e desmatado milhões de hectares. Na Argentina, a oligarquia agrária tem mobilizado
milhares de pessoas em uma paralisação que buscava concessões sobre os impostos de
exportação governamentais.
Mesmo assim, a direita tem conseguido constituir uma base social forte em vários países e
tem combinado a luta parlamentar com a mobilização das ruas de maneira efetiva. Tem
utilizado a mobilização massiva para consolidar projetos de ultradireita (Colômbia), avançar
sobre campanhas contra as políticas progressistas (referendo na Venezuela), bloquear
estradas e parar a economia (Argentina) e consolidar projetos separatistas (Bolívia).
Na maioria dos países a embaixada estadunidense e agências como a National Endowment
for Democracy (NED, Fundação Nacional para a Democracia em português) têm gastado
milhares de dólares para financiar partidos de oposição, dar assessoria sobre propaganda
eleitoral, promover candidatos de direita e desestabilizar governos adversários de seus
interesses, ao mesmo tempo em que reativam a IV Frota e dão milhões de dólares em ajuda
militar a governos terroristas como o colombiano.
Da mesma forma, a direita tem promovido a violência das ruas e o terrorismo em vários
países. Tem criado grupos de choque para fustigar simpatizantes do governo central na
Bolívia e Venezuela, grupos armados privados para retirar de seus lugares camponeses no
Brasil e Colômbia, e consolidar assim megaprojetos agromineradores e energéticos.
O mito do reformismo: Novas roupagens, velhas ilusões
Ao contrário do que sucedeu com a socialdemocracia européia de finais do século XIX e das
primeiras seis décadas do século XX, em países beneficiados por um desenvolvimento
econômico, político e social capitalista baseado na exploração colonial e neocolonial, que lhes
permitiu acumular excedentes e redistribuir uma parte deles entre os grupos sociais
subalternos, na América Latina a transnacionalização e desregularização das economias, sua
crescente dependência no que diz respeito ao capital financeiro internacional, e à Nova
Ordem Mundial imposta, criou um mecanismo de segurança que restringia ainda mais aos
governantes a tomada de decisões de maneira autônoma ou o desenvolvimento de projetos
de reforma progressista. Assim mesmo, depois da pacificação e a derrota política sofrida pela
esquerda nas décadas anteriores, onde se instauraram ditaduras de "segurança nacional" e o
imperialismo usou a intervenção direta e a luta contrainsurgente para destruir os movimentos
revolucionários dos anos sessenta, setenta, abriu-se nos noventa um cenário onde o
imperialismo reconstruiu a hegemonia burguesa, instaurando a "democracia neoliberal" como
forma única de governo na região.
Desta maneira, o imperialismo pode "tolerar" certos governos de centroesquerda, sempre e
quando respeitem as regras do jogo, posto que pode garantir que, ainda que nas urnas se
vote por um candidato de esquerda, a economia sempre estará sujeita às políticas de
mercado. Isto restringe enormemente as possibilidades de levar a cabo reformas
progressistas na região. Os governos de centroesquerda têm enorme dificuldade para
implementar mudanças de fundo, redistribuição de terras e em poucos casos
renacionalização de empresas. As elites agromineradoras se negam a compartilhar ou
redistribuir seus enormes dividendos obtidos dos altos preços das matérias primas e
pressionam os governos para desregulamentar a economia e aprofundar o neoliberalismo. Ao
mesmo tempo, o imperialismo segue desenvolvendo uma política contrainsurgente na
Colômbia e ameaçando com uma intervenção na Venezuela, onde a recuperação da empresa
estatal petroleira tem permitido ao governo levar a cabo projetos alternativos "intoleráveis"
para os poderosos.
Em resumo, nem hoje, nem nunca, existiram as condições para adiantar na América Latina
um projeto reformista equiparável ao da socialdemocracia européia (nem sequer na etapa
desenvolvimentista da metade do século passado). Mais ainda, reformas progressistas
básicas de hoje se chocam com o obstáculo da hegemonia neoliberal.
Os setores de esquerda que pretendem reeditar hoje, inclusive com linguagem marxista, as
velhas ilusões reformistas do passado, ou aqueles que fazem um chamado ao "realismo", ou
a construir um "capitalismo nacional", abandonam na prática o projeto estratégico da
revolução a longo prazo e terminam, em última instância, sendo funcionais à reconstrução da
hegemonia capitalista.
Os desafios da esquerda revolucionária: construção de poder alternativo, luta pela hegemonia socialista
A relação entre a estratégia e a tática políticas tem sido sempre um problema queem gerado
debates na esquerda através da história. No entanto, a história mesmo tem demonstrado que
os movimentos políticos de esquerda exitosos têm conseguido perceber os momentos táticos
em sua relação dialética com o objetivo estratégico (sem nunca perdê-lo de vista); têm
presente sempre a categoria de totalidade na hora de analisar as tarefas políticas imediatas;
têm percebido, para além dos fenômenos superficiais do momento, os aspectos gerais de
tendência de uma época, e têm se preocupado em todos os casos em incentivar a iniciativa
política direta do campo popular como motor de transformação revolucionária.
Na prática, no entanto, muitos movimentos políticos se perdem nas tarefas do dia a dia, caem
na rotina, tendem a desligar-se dos movimentos sociais, e pouco a pouco se deixam arrastar
pela chantagem institucional.
Se a esquerda revolucionária se caracteriza por difundir o socialismo como a alternativa
política a ser conquistada pelo campo popular, por apresentar a luta pelo poder como o
objetivo estratégico a alcançar, na maioria dos casos, entretanto, essa estratégia prática se
dilui de fato. Por exemplo, se um objetivo primordial para avançar sobre o projeto
revolucionário é conseguir uma abertura democrática nacional, a esquerda se perde nas
tarefas mais ou menos imediatas da luta eleitoral-parlamentar ou nas coalizões eleitorais; não
as percebe na prática como um momento tático, ainda que importante em certos casos,
sempre dependente de uma totalidade mais abrangente da luta social: descuida ou abandona
a criação de poder alternativo extrainstitucional, a organização e mobilização popular, e em
última análise, a luta antissistêmica e a organização revolucionária.
Desde a institucionalidade burguesa é impossível construir uma contra-hegemonia socialista.
Ainda que, tal como o percebia Gramsci, os espaços da democracia burguesa sejam um
campo de batalha que podem permitir ganhar certas posições ("guerra de posições"), a
criação e consolidação de uma hegemonia socialista se desenvolvem principalmente a partir
da organização e da luta social.
A educação e organização política de base, o impulso e reconstrução dos movimentos
sociais, a articulação das lutas parciais rumo aos objetivos comuns, a luta pela hegemonia, o
desenvolvimento de poder dual (poder local alternativo que dispute o poder com a burguesia)
e a relação indissolúvel entre dirigentes e movimentos sociais serão fatores decisivos que
permitirão sacudir a correlação de forças a favor do campo popular e consolidar projetos
alternativos duradouros.
Na atualidade, os crescentes custos no nível de vida da população, a crise alimentar produto
dos nefastos projetos de agrocombustíveis, a crise mundial capitalista e o crescente
descontentamento popular são condições que possibilitam retomar a ofensiva, sempre e
quando a esquerda revolucionária seja capaz de organizar o campo popular, para além da
luta eleitoral, e de impulsionar a rebeldia rumo à luta pelo socialismo.
(Traduzido por Roberta Moratori)
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Adorei o texto. E sim, a sociedade é baseada no preconceito. Sei disso, porque aqui em casa não é muito diferente. Ok, não sou homossexual, mas não tenho nada contra eles. Não sou homofóbico.
ResponderExcluirUma questão relevante: Todos os homofóbicos são preconceituosos?
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