Num livro publicado na Inglaterra em 1998, o linguista britânico Jarnes Milroy escreveu (pp. 64-65): “Numa época em que a discriminação em termos de raça, cor, religião ou sexo não é publicamente aceitável, o último baluarte da discriminação social explícita continuará a ser o uso que uma pessoa faz da língua“.
Essas palavras me voltaram à lembrança quando li, no Jornal do Brasil do dia 10/11/2002, o seguinte trecho da coluna Coisas de política, assinada pela jornalista Dora Kramer:
Dúvida pertinente: até quando será considerado politicamente correto ignorar que o presidente eleito do Brasil comete crassos e constantes erros de português?
Queira Deus que, em breve, o assunto já possa ser abordado sem provocar grandes traumas, porque, daqui a pouco, será preciso rever os currículos das escolas do ensino básico, a fim de adaptar as lições sobre plural e concordância ao idioma que as crianças ouvem o presidente falar na televisão.
Evidentemente, não era a primeira vez que eu lia esse tipo de afirmação preconceituosa sobre o modo de falar de Luiz Inácio Lula da Silva — todos sabemos que esse foi um dos instrumentos de difamação lançados por seus oponentes nas disputas eleitorais de 1989, 1994 e 1998. O que me chamou a atenção foi a sobrevivência desses argumentos, com a mesma intensidade, mais de uma década depois.
Duas semanas mais tarde, o jornalista Daniel Piza escreveu, no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo (24/11/2002):
Por que não me ufano: Lula, seus companheiros de PT e grande parte da população maltratam o idioma cortando o “s” final das palavras e todas as concordâncias que a lógica sintática pede. Que não seja a morte do plural, em nenhum dos sentidos.
Seria muita ilusão supor que uma vitória como foi a de Lula nas eleições de 2002 bastaria para que o preconceito linguístico desaparecesse de vez da nossa sociedade. Afinal, de todos os conjuntos de superstições infundadas que compõem a cultura brasileira, nenhum é tão resistente, parece, De todos os instrumentos de controle e coerção social, a linguagem talvez seja o mais complexo e sutil.quanto o das ideias preconcebidas que impregnam nosso imaginário a respeito de línguas em geral e, mais especificamente, da língua que falamos.
Simplesmente, o preconceito linguístico não existe. O que existe, de fato, é um profundo e entranhado preconceito social. Se discriminar alguém por ser negro, índio, pobre, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual etc. já começa a ser considerado publicamente inaceitável (o que não significa que essas discriminações tenham deixado de existir) e politicamente incorreto, fazer essa mesma discriminação com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita naturalidade, e a acusação de “falar tudo errado”, “atropelar a gramática” ou “não saber português” pode ser proferida por gente de todos os espectros ideológicos, desde o conservador mais empedernido até o revolucionário mais radical. Por que será que é assim?
É que a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coerção social, talvez seja o mais complexo e sutil, sobretudo depois que, ao menos no mundo ocidental, a religião perdeu sua força de repressão e de controle oficial das atitudes sociais e da vida psicológica mais íntima dos cidadãos. E tudo isso é ainda mais pernicioso porque a língua é parte constitutiva da identidade individual e social de cada ser humano — em boa medida, nós somos a língua que falamos.
Infelizmente, num longo processo histórico, o que passou a ser chamado de língua é uma coisa que é vista como exterior a nós, algo que estaria acima e fora de qualquer indivíduo, externo à própria sociedade: uma espécie de entidade mística sobrenatural, que existe numa dimensão etérea secreta, imperceptível aos nossos sentidos, e à qual só uns poucos iniciados têm acesso. E por acreditar nisso que Daniel Piza pôde escrever que Lula, seus companheiros de PT e grande parte da população “maltratam o idioma”. É como se a língua não pertencesse a cada um de nós, não fizesse parte da nossa própria materialidade física, não estivesse inscrita dentro de nós — por isso ela pode ser “maltratada”, “pisoteada”, “atropelada”: a língua é vista como um Outro.
O dogma da infalibilidade papal virou piada, mas quase ninguém zomba dos dogmas gramaticais (mais velhos que a religião cristã). Por que os rótulos de “certo” e “errado” são abandonados, e até ridicularizados, em outras esferas da vida social, mas permanecem vivos e ativos quando o assunto é língua? Por que ninguém se dá conta de que a nebulosa norma culta é um produto humano e, portanto, imperfeito, falho e suscetível de contestação e reformulação?
Marcos Bagno, em A Norma Oculta: Língua e poder na sociedade brasileira.
Nenhum comentário :
Postar um comentário