sábado, outubro 22, 2011

Vale a pena polemizar???


Vale a pena polemizar?

Tento me colocar no lugar do leitor que comenta os textos publicados no blog e fica sem resposta. Imagino que deve ser decepcionante. Peço desculpas ao leitor, mas também a compreensão. Outro dia, o meu amigo Walterego me chamava a atenção para este aspecto e insinuou que é desrespeitoso. Tentei justificar e notei que sempre leio todos os comentários. Sou grato aos que tomam o seu precioso tempo para ler e comentar, que contribuem para a minha reflexão. O Walterego irritou-se quando frisei que polêmicas são inúteis! Então, polemizou-se a polêmica. Calei e deixei-o falar. Não queria atiçar o fogo, mas isto pareceu ainda mais irritante ao meu amigo. Não obstante, a amizade prevaleceu! Amigos não se deixam abalar por discussões, por mais acirradas que sejam!
Fiquei a pensar sobre os argumentos do Walterego. A relação com o outro pressupõe respeito, diálogo e atitude ética, aspectos nem sempre observados na polêmica. Esta nega o diálogo, pois se trata de quem tem razão. No fundo, é uma questão de força, de fazer valer a “sua verdade”, a “sua opinião”, não importa quais os procedimentos. Portanto, concordo com Foucault que:
“No jogo sério das perguntas e respostas, no trabalho de elucidação recíproco, os direitos de cada um são de qualquer forma imanentes à discussão. Eles decorrem apenas da situação de diálogo. Aquele que questiona nada mais faz do que usar um direito que lhe é dado: não ter certeza, perceber uma contradição, ter necessidade de uma informação suplementar, defender diferentes postulados, apontar um erro de raciocínio. Quanto àquele que responde, ele tampouco dispõe de um direito a mais em relação à própria discussão: ele está ligado, pela lógica do seu próprio discurso, ao que disse previamente e, pela aceitação do diálogo, ao questionamento do outro” (225). *
A polêmica tende a suplantar o diálogo:
“O polemista prossegue investido dos privilégios que detém antecipadamente, e que nunca aceita recolocar em questão. Possui por princípio, os direitos que o autorizam à guerra e que fazem dessa luta um empreendimento justo; não tem diante dele um parceiro na busca da verdade, mas um adversário, um inimigo que está enganado, que é perigoso e cuja própria existência constitui uma ameaça. O jogo para ele não consiste, portanto, em reconhecê-lo como sujeito com direito à palavra, mas em anulá-lo como interlocutor de qualquer diálogo possível, e seu objetivo final não será se aproximar tanto quanto possível de uma difícil verdade, mas fazer triunfar a justa causa da qual ele é, desde o início, o portador manifesto. O polemista se sustenta em uma legitimidade da qual seu adversário, por definição, está excluído” (225-226).
A polêmica é uma “figura parasitária da discussão e obstáculo à busca da verdade”. Ela “define alianças, recruta partidários, produz a coalizão de interesses ou opiniões, representa um partido; faz do outro um inimigo portador de interesses opostos contra o qual é preciso lutar até o momento em que, vencido, ele nada mais terá a fazer senão se submeter ou desaparecer” (226).
Se o tema é polêmico, o melhor é simplesmente respeitar o que o outro pensa! É ingênuo supor que o polemista está disposto a abrir mão das certezas absolutas e dialogar. Muito pelo contrário, o objetivo é destruir o argumento do outro – no contexto ditatorial objetiva-se anular a liberdade de expressão e/ou eliminar fisicamente o outro.
Não escrevo para fazer cabeça ou converter. Não quero impor a verdade, nem conquistar seguidores. Estou aberto a dialogar e aprender. O melhor critério da verdade ainda é a prática. Na medida em que a polêmica delimita trincheiras instransponíveis e anula o diálogo, não vale a pena polemizar!

* As referências são de “POLÊMICA, POLÍTICA E PROBLEMATIZAÇÕES (1984)”, in FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e escritos; V). O número entre parênteses indica a página.

http://antoniozai.wordpress.com/2011/10/15/vale-a-pena-polemizar/

quinta-feira, outubro 20, 2011

O Capitalismo Chegou ao Fim da Linha

capitalismo

Sociólogo norte-americano antecipa que ‘o capitalismo chegou ao fim da linha’



Aos 81 anos, o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein acredita que o capitalismo chegou ao fim da linha: já não pode mais sobreviver como sistema. Mas – e aqui começam as provocações – o que surgirá em seu lugar pode ser melhor (mais igualitário e democrático) ou pior (mais polarizado e explorador) do que temos hoje em dia.
capitalismoestá derretendo
Estamos, pensa este professor da Universidade de Yale e personagem assíduo dos Fóruns Sociais Mundiais, em meio a uma bifurcação, um momento histórico único nos últimos 500 anos. Ao contrário do que pensava Karl Marx, o sistema não sucumbirá num ato heróico. Desabará sobre suas próprias contradições. Mas atenção: diferentemente de certos críticos do filósofo alemão, Wallerstein não está sugerindo que as ações humanas são irrelevantes.
Ao contrário: para ele, vivemos o momento preciso em que as ações coletivas, e mesmo individuais, podem causar impactos decisivos sobre o destino comum da humanidade e do planeta. Ou seja, nossas escolhas realmente importam. “Quando o sistema está estável, é relativamente determinista. Mas, quando passa por crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante.”
É no emblemático 1968, referência e inspiração de tantas iniciativas contemporâneas, que Wallerstein situa o início da bifurcação. Lá teria se quebrado “a ilusão liberal que governava o sistema-mundo”. Abertura de um período em que o sistema hegemônico começa a declinar e o futuro abre-se a rumos muito distintos, as revoltas daquele ano seriam, na opinião do sociólogo, o fato mais potente do século passado – superiores, por exemplo, à revolução soviética de 1917 ou a 1945, quando os EUA emergiram com grande poder mundial.
As declarações foram colhidas no dia 4 de outubro pela jornalista Sophie Shevardnadze, que conduz o programa Interview na emissora de televisão russa RT. A transcrição e a tradução para o português são iniciativas do sítio Outras Palavras, 15-10-2011.
Leia aqui a entrevista, na íntegra:
– Há exatamente dois anos, você disse ao RT que o colapso real da economia ainda demoraria alguns anos. Esse colapso está acontecendo agora?
– Não, ainda vai demorar um ano ou dois, mas está claro que essa quebra está chegando.
– Quem está em maiores apuros: Os Estados Unidos, a União Europeia ou o mundo todo?
– Na verdade, o mundo todo vive problemas. Os Estados Unidos e União Europeia, claramente. Mas também acredito que os chamados países emergentes, ou em desenvolvimento – Brasil, Índia, China – também enfrentarão dificuldades. Não vejo ninguém em situação tranquila.
– Você está dizendo que o sistema financeiro está claramente quebrado. O que há de errado com o capitalismo contemporâneo?
– Essa é uma história muito longa. Na minha visão, o capitalismo chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver como sistema. A crise estrutural que atravessamos começou há bastante tempo. Segundo meu ponto de vista, por volta dos anos 1970 – e ainda vai durar mais uns 20, 30 ou 40 anos. Não é uma crise de um ano, ou de curta duração: é o grande desabamento de um sistema. Estamos num momento de transição. Na verdade, na luta política que acontece no mundo — que a maioria das pessoas se recusa a reconhecer — não está em questão se o capitalismo sobreviverá ou não, mas o que irá sucedê-lo. E é claro: podem existir duas pontos de vista extremamente diferentes sobre o que deve tomar o lugar do capitalismo.
– Qual a sua visão?
– Eu gostaria de um sistema relativamente mais democrático, mais relativamente igualitário e moral. Essa é uma visão, nós nunca tivemos isso na história do mundo – mas é possível. A outra visão é de um sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já é assim, mas pode advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta política que vivemos. Tecnicamente, significa é uma bifurcação de um sistema.
– Então, a bifurcação do sistema capitalista está diretamente ligada aos caos econômico?
– Sim, as raízes da crise são, de muitas maneiras, a incapacidade de reproduzir o princípio básico do capitalismo, que é a acumulação sistemática de capital. Esse é o ponto central do capitalismo como um sistema, e funcionou perfeitamente bem por 500 anos. Foi um sistema muito bem sucedido no que se propõe a fazer. Mas se desfez, como acontece com todos os sistemas.
– Esses tremores econômicos, políticos e sociais são perigosos? Quais são os prós e contras?
– Se você pergunta se os tremores são perigosos para você e para mim, então a resposta é sim, eles são extremamente perigosos para nós. Na verdade, num dos livros que escrevi, chamei-os de “inferno na terra”. É um período no qual quase tudo é relativamente imprevisível a curto prazo – e as pessoas não podem conviver com o imprevisível a curto prazo. Podemos nos ajustar ao imprevisível no longo prazo, mas não com a incerteza sobre o que vai acontecer no dia seguinte ou no ano seguinte. Você não sabe o que fazer, e é basicamente o que estamos vendo no mundo da economia hoje. É uma paralisia, pois ninguém está investindo, já que ninguém sabe se daqui a um ano ou dois vai ter esse dinheiro de volta. Quem não tem certeza de que em três anos vai receber seu dinheiro, não investe – mas não investir torna a situação ainda pior. As pessoas não sentem que têm muitas opções, e estão certas, as opções são escassas.
– Então, estamos nesse processo de abalos, e não existem prós ou contras, não temos opção, a não ser estar nesse processo. Você vê uma saída?
– Sim! O que acontece numa bifurcação é que, em algum momento, pendemos para um dos lados, e voltamos a uma situação relativamente estável. Quando a crise acabar, estaremos em um novo sistema, que não sabemos qual será. É uma situação muito otimista no sentido de que, na situação em que nos encontramos, o que eu e você fizermos realmente importa. Isso não acontece quando vivemos num sistema que funciona perfeitamente bem. Nesse caso, investimos uma quantidade imensa de energia e, no fim, tudo volta a ser o que era antes. Um pequeno exemplo. Estamos na Rússia. Aqui aconteceu uma coisa chamada Revolução Russa, em 1917. Foi um enorme esforço social, um número incrível de pessoas colocou muita energia nisso. Fizeram coisas incríveis, mas no final, onde está a Rússia, em relação ao lugar que ocupava em 1917? Em muitos aspectos, está de volta ao mesmo lugar, ou mudou muito pouco. A mesma coisa poderia ser dita sobre a Revolução Francesa.
– O que isso diz sobre a importância das escolhas pessoais?
– A situação muda quando você está em uma crise estrutural. Se, normalmente, muito esforço se traduz em pouca mudança, nessas situações raras um pequeno esforço traz um conjunto enorme de mudanças – porque o sistema, agora, está muito instável e volátil. Qualquer esforço leva a uma ou outra direção. Às vezes, digo que essa é a “historização” da velha distinção filosófica entre determinismo e livre-arbítrio. Quando o sistema está relativamente estável, é relativamente determinista, com pouco espaço para o livre-arbítrio. Mas, quando está instável, passando por uma crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante. As ações de cada um realmente importam, de uma maneira que não se viu nos últimos 500 anos. Esse é meu argumento básico.
– Você sempre apontou Karl Marx como uma de suas maiores influências. Você acredita que ele ainda seja tão relevante no século XXI?
– Bem, Karl Marx foi um grande pensador no século XIX. Ele teve todas as virtudes, com suas ideias e percepções, e todas as limitações, por ser um homem do século XIX. Uma de suas grandes limitações é que ele era um economista clássico demais, e era determinista demais. Ele viu que os sistemas tinham um fim, mas achou que esse fim se dava como resultado de um processo de revolução. Eu estou sugerindo que o fim é reflexo de contradições internas. Todos somos prisioneiros de nosso tempo, disso não há dúvidas. Marx foi um prisioneiro do fato de ter sido um pensador do século XIX; eu sou prisioneiro do fato de ser um pensador do século XX.
– Do século 21, agora…
– É, mas eu nasci em 1930, eu vivi 70 anos no século XX, eu sinto que sou um produto do século XX. Isso provavelmente se revela como limitação no meu próprio pensamento.
– Quanto – e de que maneiras – esses dois séculos se diferem? Eles são realmente tão diferentes?
– Eu acredito que sim. Acredito que o ponto de virada deu-se por volta de 1970. Primeiro, pela revolução mundial de 1968, que não foi um evento sem importância. Na verdade, eu o considero o evento mais significantes do século XX. Mais importante que a Revolução Russa e mais importante que os Estados Unidos terem se tornado o poder hegemônico, em 1945. Porque 1968 quebrou a ilusão liberal que governava o sistema mundial e anunciou a bifurcação que viria. Vivemos, desde então, na esteira de 1968, em todo o mundo.
– Você disse que vivemos a retomada de 68 desde que a revolução aconteceu. As pessoas às vezes dizem que o mundo ficou mais valente nas últimas duas décadas. O mundo ficou mais violento?
– Eu acho que as pessoas sentem um desconforto, embora ele talvez não corresponda à realidade. Não há dúvidas de que as pessoas estavam relativamente tranquilas quanto à violência em 1950 ou 1960. Hoje, elas têm medo e, em muitos sentidos, têm o direito de sentir medo.
– Você acredita que, com todo o progresso tecnológico, e com o fato de gostarmos de pensar que somos mais civilizados, não haverá mais guerras? O que isso diz sobre a natureza humana?
– Significa que as pessoas estão prontas para serem violentas em muitas circunstâncias. Somos mais civilizados? Eu não sei. Esse é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.
– É isso que vemos hoje? O Ocidente tentando ensinar os bárbaros de todo o mundo?
– É o que vemos há 500 anos.

segunda-feira, outubro 17, 2011

Soledad Barrett Viedma, quem é essa mulher?


Soledad, a mulher do Cabo Anselmo

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. O artigo é de Urariano Mota.

Nota da Redação: O programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, entrevista nesta segunda, às 22 horas, o ex-militar José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, ex-participante de um motim na Marinha, nos anos 60, que, após um período de exílio em Cuba, voltou para o Brasil, foi preso e delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS. A lista de denunciados incluiu sua companheira, Soledad Viedma, que acabou torturada e morta pela ditadura. A TV Cultura escolheu o Cabo Anselmo como entrevistado para marcar a estreia de Mario Sergio Conti, ex-diretor da Veja e atual diretor de redação da revista Piauí, na condução do programa. 

A escolha se dá justo no momento em que se discute no Brasil a instalação da Comissão da Verdade, que enfrenta muita resistência de setores que insistem em manter na penumbra fatos ocorridos em um dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil. Publicamos a seguir um artigo do escritor Urariano Mota, autor de um livro sobre Soledad Viedma. 


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Em 1970, de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. A lista de denuciados incluía sua namorada, Soledad Viedma, que acabou morta devido à tortura. 

Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento explicar.

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo. 

Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques, vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza? 

E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê?

Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político: 

“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto. 

Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:

‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.

Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.

Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar. 

(*) Urariano Mota, 59 anos, é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).
CARTA MAIOR


quinta-feira, outubro 13, 2011

O Nome da História



A eremita trouxe as xícaras de chá e sentou-se de frente para o adolescente na mesa de madeira debaixo da pérgula, junto de onde ele tinha deixado a bicicleta. Tomaram um gole em sincronia e resvalaram numa página de silêncio enquanto observavam o ocre sem limites de Val d’Orcia.
– Em que você está pensando? – ela disse.
– Que talvez Deus não exista.
Ele tomou mais um gole, mas ela franziu um pouco a testa e não soube preservar o silêncio que ele talvez esperasse.
– Eu às vezes oro para que Deus não exista – ela disse de repente, a xícara junto ao peito como uma vela numa procissão.
– Como assim?
– Não sei. Às vezes penso que seria belíssimo se Deus fosse uma invenção dos homens.
– Não sei – ele coçou a barba rala. – Eu preferia que Deus fosse mais importante do que uma boa alucinação.
– É que – ela gastou um instante juntando palavras para descrever o irromper de sangue que trazia dentro do peito – isso se ajustaria perfeitamente ao Deus que eu gostaria de adorar e servir. Um Deus que se permitisse criar. Que se permitisse aperfeiçoar.
– Mas, que se fosse assim, seria para sempre subalterno aos homens.
– Não vejo porquê – ela foi sincera. – Talvez tudo no universo seja subalterno aos homens, menos esse Deus.
– Você está de novo entrando em terreno de excomunhão.
– E você veio buscar companhia num eremitério – ela explicou, vagamente irritada.
E voltaram a habitar o silêncio. Ele arriscou olhá-la por um instante, depois fechou os olhos e meneou a cabeça para capturar o dia no cheiro do vento.
– Acho que tudo está ligado – ela não resistiu – a essa coisa humana de contar histórias. Histórias que tenham começo, meio e fim. O desejo de ouvir e contar histórias é parte da nossa própria estrutura. O homem é maior que os anjos, mas interrompe o que estiver fazendo para dobrar-se à superioridade da narrativa. O universo inteiro é menor que a menor parábola.
– Você está querendo dizer que Deus é uma ficção.
– Não, estou dizendo que as histórias podem ser indicação de Deus – ela corrigiu, e apertava a xícara entre os dedos como se o calor da tarde não bastasse para aquecê-la. – E que nós, seres humanos, somos feitos de tal forma que o universo é regido de acordo com as histórias que contamos. Quando as ficções mudam, o mundo muda em conformidade.
– Isso é porque contamos histórias para inventar um sentido para o mundo – ele conformou-se ao papel de antagonista que no rumo da conversa ela havia destinado para ele. – A ficção dá a ordenação que o mundo por si mesmo não tem. Para ouvir histórias é preciso contribuir com uma espécie de “submissão experimental”, uma ingenuidade assumida de caso pensado. Fazemos isso na esperança de encontrar um sentido para a coisa toda. O que você está dizendo é que Deus não passa do resultado mais elevado desse tipo de experimentação. A maior história jamais contada, por assim dizer.
– Quero dizer que acho que Deus existe mesmo, mas que só se manifesta na ficção.
– O que é absurdo – ele disse, e imediatamente lamentou não ter um argumento melhor para interpor.
Ele mudou de posição no banco e uma perna roçou por um instante a meia preta dela. Ela recuou imediatamente, mas mais por coordenação fraternal do que por verdadeiro constrangimento. Nunca falariam a respeito disso, mas sabiam que não fosse a diferença abismal de idade teriam juntos explorado em redemoinho as camas do verão. Nem os votos dela nem o constrangimento dele teriam se colocado no caminho.
– E há algo sobre Deus que não seja absurdo? A ortodoxia, que é conservadora, insiste nisso. A liturgia. Nossa amizade é absurda.
Ele tomou o último gole e afastou a xícara para o centro da mesa. Depois alçou uma perna para cima do banco, apertou-a junto do corpo e apoiou o queixo no joelho. Ela olhava com um vago sorriso para um ponto no ar.
– Estou aqui tentando lembrar o nome de uma história de Jorge Luis Borges sobre um agente secreto num país estrangeiro que mata um homem só por causa do nome dele. Eles conversam um pouco sobre destino, vida e morte e depois o sujeito mata esse civil desconhecido só porque o nome dele, quando a notícia do assassinato saísse no jornal, serviria de senha para que a organização do agente deslanchasse alguma mobilização de guerra.
– E por que você quer lembrar o nome da história?
– Não sei. É que a ideia do conto se tornou de imediato uma obsessão para mim, essa de matar uma pessoa só para passar uma mensagem – ela finalmente olhou diretamente para ele. – Você me mataria para passar uma mensagem? Como posso saber se você não tem um revólver nessa mochila?
– Você não tem o nome certo – ele disse, e procurou o horizonte. – Não é a mensagem que eu quero passar.
Ela baixou a cabeça e sorriu, imediatamente irritada por ter se permitido irritar tão facilmente. Ela às vezes esquecia que ele era homem, mas isso só até que ele a fizesse lembrar do jeito mais inequívoco. Que os homens cedessem tão facilmente ao seu próprio arquétipo era, por si mesmo, o grande arquétipo masculino.
– A pergunta que você na verdade quer me fazer – ele adivinhou, – é se eu mataria Deus para passar uma mensagem.
E olhou para ela.
– A pergunta que eu quero fazer – ela exigiu, muito empertigada, – é se Deus se deixaria matar para passar uma mensagem.

Bacia das Almas

terça-feira, outubro 11, 2011

Rafinha dançou por mexer com gente rica



Rafinha dançou por mexer com gente rica

O integrante do CQC, que fez piada de péssimo gosto com Wanessa Camargo, já falara coisas piores. Agora mexeu com esposa de milionário, que ameaçou tirar anúncios da TV Bandeirantes. Ninguém classificou caso como atentado à liberdade de expressão. Já quando ministra condena comercial de lingerie machista, o coro é um só: “Censura”!
Qual é o problema com a suposta piada de Rafinha Bastos? Ele antes já exibira todas as cores de seu mau gosto e nada acontecera.
Gilberto Maringoni: Rafinha dançou por mexer com gente ricaTodos conhecem a pérola, não? O apresentador aproveitou-se de uma bola levantada pelo chefe da cena do programa Custe o que Custar (CQC), Marcelo Tas, sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, e cortou ligeiro: “Eu comeria ela e o bebê, não tô nem aí”. Foi logo acompanhado por risos e caretas de seus colegas de vídeo, Tas e Marco Luque .
A grosseria foi ao ar dia 19 de setembro. A TV Bandeirantes, que exibe o programa, levou duas semanas para decidir o que fazer. Em 3 de outubro, o apresentador foi suspenso da bancada. Não se sabe se voltará.
Não foi a primeira vez que Rafinha exerceu sua – digamos – sutileza. Em entrevista à revista Rolling Stone, em maio de 2011, ele saiu-se com esta: “Mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade”.
A gracinha com as feias não rendeu ao gaúcho de dois metros de altura nada além de protestos de movimentos femininos. Mas a liberdade com a cantora custou-lhe até agora, além do posto no programa, o cancelamento de shows e o rompimento de alguns contratos de publicidade. Rafinha perdeu grana com a brincadeira.
Pensamento vivo
Repetindo: qual o problema com as tiradas do rapaz de 34 anos, num universo midiático em que o mau gosto, a boçalidade e o “politicamente incorreto” passaram a ser valores em si?
Rafinha vive num tempo em que as demonstrações de preconceito, como as do apresentador de outro programa de entretenimento da mesma emissora, Boris Casoy, não têm consequências maiores. Todos se recordam da fineza do jornalista ao desqualificar dois garis que apareceram em seu programa para desejar boas festas, no final de 2009. Sem saber que os microfones estavam abertos, ele foi ao ponto: “Que merda: dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”.
O artista do CQC também sabe que o pensamento vivo de gente como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) recebe destacada acolhida em grandes meios de comunicação. Sua entrevista à revista Playboy  , em junho último, é pródiga em preciosidades. Segue um exemplo: “Moro num condomínio, de repente vai um casal homossexual morar do meu lado. Isso vai desvalorizar minha casa!”.
Outro luminar da intelectualidade midiática, o ex-compositor Lobão, por sua vez, exibiu os músculos cerebrais em um festival de cultura em São Francisco Xavier (São José dos Campos, SP), também em junho. Após demonstrar criteriosamente que toda a música popular brasileira não tem nenhum valor, ele sentenciou: “A gente tinha que repensar a ditadura militar. Essa Comissão da Verdade que tem agora. (…) Que loucura que é isso? Aí tem que ter anistia pros caras de esquerda que sequestraram o embaixador, e pros caras que torturavam, arrancavam umas unhazinhas, não?”.
Os exemplos são infindáveis. Rafinha provavelmente é leitor de Reinaldo Azevedo, o blogueiro de Veja, que, em março de 2010, durante uma palestra no afamado Instituto Millenium, em São Paulo, externou sua particular concepção de liberdade de expressão: “A imprensa tem que acabar com o isentismo e o outroladismo, essa história de dar o mesmo espaço a todos”. Na mesma oportunidade, o cineasta aposentado Arnaldo Jabor lançou o desafio de “impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo”. Impedir o pensamento… muito bom!
A baixaria televisiva contaminou até mesmo as campanhas eleitorais. Continuam na memória de todos os ataques da campanha de José Serra à Dilma Rousseff, em 2010, sobre o tema do aborto. Em Nova Iguaçu (RJ), Monica Serra, esposa do então candidato tucano, disse o seguinte sobre a petista: “Ela é a favor de matar as criancinhas”.
Dois anos antes, a campanha de Marta Suplicy (PT) à prefeitura de São Paulo já havia colocado en dúvida a sexualidade de seu oponente, ao  dizer: “Você sabe mesmo quem é o Kassab? Sabe de onde ele veio? Qual a história do seu partido?” Em seguida, aparece a foto do prefeito: “Sabe se ele é casado? Tem filhos?”
Bem acompanhado
Rafinha está em boa companhia. Deve se sentir incentivado para exercer seu rosário de preconceitos. Provavelmente pensa estar “quebrando paradigmas”, investindo contra o estabelecido e externando uma rebeldia adolescente, que lhe granjeia grande popularidade e bons cachês.
Ridicularizar e humilhar quem tem poucas chances de se defender, em uma sociedade com desigualdades abissais como a brasileira, é um grande negócio. Prova isso a lista de clientes dos shows do moço, que constam de sua página na internet. São elas Votorantim, Bosch, Agroceres, LG, HP, Ernst & Young, IBM, Banco Real, Vivo, Springer Carrier, Cargil, Unilever, Motorola, Chevrolet, Sherwin Williams, Valor Econômico, Bunge, GNT (Globosat), Jornal O Estado de S. Paulo, Coca-Cola, Bradesco, ESPM etc. Segundo a Veja, ele foi visto em mais de 730 comerciais somente neste ano.
Rafinha faz parte de uma tendência do humor televisivo, que se abriu após a chegada dos humoristas do Casseta e Planeta ao vídeo. A linhagem envolve também o programa Panico (da Rede TV!) e outros imitadores, além do Zorra Total, da Globo. Todos se dizem distantes da política, independentes e praticantes de um humor anárquico e sem freios. Nem mesmo a participação de Marcelo Tas comopalestrante em um encontro da juventude do DEM ,em novembro de 2008, ou de Marcelo Madureira nas palestras hidrófobas do Instituto Millenium, os comprometem, segundo eles, com idéias que não as próprias.
Acima da cintura
Num panorama desses, repetimos: qual o problema de Rafinha Bastos?
O problema é que o garoto bateu acima da cintura.
Tudo bem desancar garis, a esquerda que foi à luta nos anos da ditadura, exaltar a parcialidade da imprensa e atacar homossexuais e outros grupos vulneráveis.
Não pode é investir contra o topo da pirâmide social.
Rafinha cometeu esse pecado. Wanessa Camargo é casada com Marcus Buaiz, 31 anos, herdeiro de um dos maiores conglomerados empresariais do Espírito Santo, o Grupo Buaiz, que completa 70 anos em 2012. O grupo é formado pela TV Vitória (afiliada da Rede Record), por duas rádios, pelo Nova Cidade Shopping Center, por várias empresas de alimentação (Café Número Um, Moinho Três Rios e Moinho Vitória), pela Buaiz Importação e Exportação, pela incorporadora Meca e pela Automóbile Comércio de Veículos, entre outras.
Marcus Buaiz transferiu-se para São Paulo, onde é proprietário de casas noturnas e restaurantes, além de uma empresa de marketing esportivo, a 9INE, em parceria com o ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Segundo o jornal A Gazeta, de Vitória, o empresário e seu sócio teriam ameaçado tirar anúncios do programa, após a performance de Rafinha Bastos. “Um comercial de 30 segundos no CQC custa 130 mil reais. Já um merchandising pode custar de 240 mil a dois milhões e 400 mil reais, sem incluir cachês”, diz a publicação.
Com tudo isso, a Bandeirantes podou Rafinha Bastos de sua programação.
Dois pesos
O curioso da história é que intenção semelhante, de retirada de um comercial de lingerie do ar, por parte da ministra da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, Iriny Lopes (PT), foi classificada como censura por colunistas de imprensa e até por colegas seus na Esplanada dos Ministérios.
Na peça, em três versões, Gisele Bundchen faz as vezes de uma esposa prestes a dar uma péssima notícia ao marido: estourou o limite do cartão de crédito, bateu o carro ou informa que sua mãe virá morar com eles. É um machismo digno dos anos 1950. Os publicitários da agência Giovanni+DraftFCB devem ter achado o máximo a própria criação. No clima de boçalidade modernosa, não há problema na mulher bonita, mas dependente do marido provedor, invocar seus atributos eróticos para conseguir o que quer.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, a representante governista assim se manifestou: “A propaganda caracteriza como correto a mulher dar uma notícia ruim apenas de lingerie e errado estar vestida normalmente. Essa definição de certo e errado caracteriza um sexismo atrasado e superado”.
A ação da ministra está a quilômetros de distância das ameaças que teriam sido feitas pelo marido de Wanessa Camargo ou pela ação da Bandeirantes, que sem mais tirou Rafinha do ar. Iriny apenas solicitou ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) a suspensão da peça publicitária.
O mundo desabou sobre sua cabeça, com insinuações sobre estética feminina e inveja da modelo.
O caso Rafinha Bastos é pedagógico. No Brasil, além das mulheres, qualquer minoria pode ser atacada. Menos uma: a minoria dos endinheirados.

sábado, outubro 22, 2011

Vale a pena polemizar???


Vale a pena polemizar?

Tento me colocar no lugar do leitor que comenta os textos publicados no blog e fica sem resposta. Imagino que deve ser decepcionante. Peço desculpas ao leitor, mas também a compreensão. Outro dia, o meu amigo Walterego me chamava a atenção para este aspecto e insinuou que é desrespeitoso. Tentei justificar e notei que sempre leio todos os comentários. Sou grato aos que tomam o seu precioso tempo para ler e comentar, que contribuem para a minha reflexão. O Walterego irritou-se quando frisei que polêmicas são inúteis! Então, polemizou-se a polêmica. Calei e deixei-o falar. Não queria atiçar o fogo, mas isto pareceu ainda mais irritante ao meu amigo. Não obstante, a amizade prevaleceu! Amigos não se deixam abalar por discussões, por mais acirradas que sejam!
Fiquei a pensar sobre os argumentos do Walterego. A relação com o outro pressupõe respeito, diálogo e atitude ética, aspectos nem sempre observados na polêmica. Esta nega o diálogo, pois se trata de quem tem razão. No fundo, é uma questão de força, de fazer valer a “sua verdade”, a “sua opinião”, não importa quais os procedimentos. Portanto, concordo com Foucault que:
“No jogo sério das perguntas e respostas, no trabalho de elucidação recíproco, os direitos de cada um são de qualquer forma imanentes à discussão. Eles decorrem apenas da situação de diálogo. Aquele que questiona nada mais faz do que usar um direito que lhe é dado: não ter certeza, perceber uma contradição, ter necessidade de uma informação suplementar, defender diferentes postulados, apontar um erro de raciocínio. Quanto àquele que responde, ele tampouco dispõe de um direito a mais em relação à própria discussão: ele está ligado, pela lógica do seu próprio discurso, ao que disse previamente e, pela aceitação do diálogo, ao questionamento do outro” (225). *
A polêmica tende a suplantar o diálogo:
“O polemista prossegue investido dos privilégios que detém antecipadamente, e que nunca aceita recolocar em questão. Possui por princípio, os direitos que o autorizam à guerra e que fazem dessa luta um empreendimento justo; não tem diante dele um parceiro na busca da verdade, mas um adversário, um inimigo que está enganado, que é perigoso e cuja própria existência constitui uma ameaça. O jogo para ele não consiste, portanto, em reconhecê-lo como sujeito com direito à palavra, mas em anulá-lo como interlocutor de qualquer diálogo possível, e seu objetivo final não será se aproximar tanto quanto possível de uma difícil verdade, mas fazer triunfar a justa causa da qual ele é, desde o início, o portador manifesto. O polemista se sustenta em uma legitimidade da qual seu adversário, por definição, está excluído” (225-226).
A polêmica é uma “figura parasitária da discussão e obstáculo à busca da verdade”. Ela “define alianças, recruta partidários, produz a coalizão de interesses ou opiniões, representa um partido; faz do outro um inimigo portador de interesses opostos contra o qual é preciso lutar até o momento em que, vencido, ele nada mais terá a fazer senão se submeter ou desaparecer” (226).
Se o tema é polêmico, o melhor é simplesmente respeitar o que o outro pensa! É ingênuo supor que o polemista está disposto a abrir mão das certezas absolutas e dialogar. Muito pelo contrário, o objetivo é destruir o argumento do outro – no contexto ditatorial objetiva-se anular a liberdade de expressão e/ou eliminar fisicamente o outro.
Não escrevo para fazer cabeça ou converter. Não quero impor a verdade, nem conquistar seguidores. Estou aberto a dialogar e aprender. O melhor critério da verdade ainda é a prática. Na medida em que a polêmica delimita trincheiras instransponíveis e anula o diálogo, não vale a pena polemizar!

* As referências são de “POLÊMICA, POLÍTICA E PROBLEMATIZAÇÕES (1984)”, in FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e escritos; V). O número entre parênteses indica a página.

http://antoniozai.wordpress.com/2011/10/15/vale-a-pena-polemizar/

quinta-feira, outubro 20, 2011

O Capitalismo Chegou ao Fim da Linha

capitalismo

Sociólogo norte-americano antecipa que ‘o capitalismo chegou ao fim da linha’



Aos 81 anos, o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein acredita que o capitalismo chegou ao fim da linha: já não pode mais sobreviver como sistema. Mas – e aqui começam as provocações – o que surgirá em seu lugar pode ser melhor (mais igualitário e democrático) ou pior (mais polarizado e explorador) do que temos hoje em dia.
capitalismoestá derretendo
Estamos, pensa este professor da Universidade de Yale e personagem assíduo dos Fóruns Sociais Mundiais, em meio a uma bifurcação, um momento histórico único nos últimos 500 anos. Ao contrário do que pensava Karl Marx, o sistema não sucumbirá num ato heróico. Desabará sobre suas próprias contradições. Mas atenção: diferentemente de certos críticos do filósofo alemão, Wallerstein não está sugerindo que as ações humanas são irrelevantes.
Ao contrário: para ele, vivemos o momento preciso em que as ações coletivas, e mesmo individuais, podem causar impactos decisivos sobre o destino comum da humanidade e do planeta. Ou seja, nossas escolhas realmente importam. “Quando o sistema está estável, é relativamente determinista. Mas, quando passa por crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante.”
É no emblemático 1968, referência e inspiração de tantas iniciativas contemporâneas, que Wallerstein situa o início da bifurcação. Lá teria se quebrado “a ilusão liberal que governava o sistema-mundo”. Abertura de um período em que o sistema hegemônico começa a declinar e o futuro abre-se a rumos muito distintos, as revoltas daquele ano seriam, na opinião do sociólogo, o fato mais potente do século passado – superiores, por exemplo, à revolução soviética de 1917 ou a 1945, quando os EUA emergiram com grande poder mundial.
As declarações foram colhidas no dia 4 de outubro pela jornalista Sophie Shevardnadze, que conduz o programa Interview na emissora de televisão russa RT. A transcrição e a tradução para o português são iniciativas do sítio Outras Palavras, 15-10-2011.
Leia aqui a entrevista, na íntegra:
– Há exatamente dois anos, você disse ao RT que o colapso real da economia ainda demoraria alguns anos. Esse colapso está acontecendo agora?
– Não, ainda vai demorar um ano ou dois, mas está claro que essa quebra está chegando.
– Quem está em maiores apuros: Os Estados Unidos, a União Europeia ou o mundo todo?
– Na verdade, o mundo todo vive problemas. Os Estados Unidos e União Europeia, claramente. Mas também acredito que os chamados países emergentes, ou em desenvolvimento – Brasil, Índia, China – também enfrentarão dificuldades. Não vejo ninguém em situação tranquila.
– Você está dizendo que o sistema financeiro está claramente quebrado. O que há de errado com o capitalismo contemporâneo?
– Essa é uma história muito longa. Na minha visão, o capitalismo chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver como sistema. A crise estrutural que atravessamos começou há bastante tempo. Segundo meu ponto de vista, por volta dos anos 1970 – e ainda vai durar mais uns 20, 30 ou 40 anos. Não é uma crise de um ano, ou de curta duração: é o grande desabamento de um sistema. Estamos num momento de transição. Na verdade, na luta política que acontece no mundo — que a maioria das pessoas se recusa a reconhecer — não está em questão se o capitalismo sobreviverá ou não, mas o que irá sucedê-lo. E é claro: podem existir duas pontos de vista extremamente diferentes sobre o que deve tomar o lugar do capitalismo.
– Qual a sua visão?
– Eu gostaria de um sistema relativamente mais democrático, mais relativamente igualitário e moral. Essa é uma visão, nós nunca tivemos isso na história do mundo – mas é possível. A outra visão é de um sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já é assim, mas pode advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta política que vivemos. Tecnicamente, significa é uma bifurcação de um sistema.
– Então, a bifurcação do sistema capitalista está diretamente ligada aos caos econômico?
– Sim, as raízes da crise são, de muitas maneiras, a incapacidade de reproduzir o princípio básico do capitalismo, que é a acumulação sistemática de capital. Esse é o ponto central do capitalismo como um sistema, e funcionou perfeitamente bem por 500 anos. Foi um sistema muito bem sucedido no que se propõe a fazer. Mas se desfez, como acontece com todos os sistemas.
– Esses tremores econômicos, políticos e sociais são perigosos? Quais são os prós e contras?
– Se você pergunta se os tremores são perigosos para você e para mim, então a resposta é sim, eles são extremamente perigosos para nós. Na verdade, num dos livros que escrevi, chamei-os de “inferno na terra”. É um período no qual quase tudo é relativamente imprevisível a curto prazo – e as pessoas não podem conviver com o imprevisível a curto prazo. Podemos nos ajustar ao imprevisível no longo prazo, mas não com a incerteza sobre o que vai acontecer no dia seguinte ou no ano seguinte. Você não sabe o que fazer, e é basicamente o que estamos vendo no mundo da economia hoje. É uma paralisia, pois ninguém está investindo, já que ninguém sabe se daqui a um ano ou dois vai ter esse dinheiro de volta. Quem não tem certeza de que em três anos vai receber seu dinheiro, não investe – mas não investir torna a situação ainda pior. As pessoas não sentem que têm muitas opções, e estão certas, as opções são escassas.
– Então, estamos nesse processo de abalos, e não existem prós ou contras, não temos opção, a não ser estar nesse processo. Você vê uma saída?
– Sim! O que acontece numa bifurcação é que, em algum momento, pendemos para um dos lados, e voltamos a uma situação relativamente estável. Quando a crise acabar, estaremos em um novo sistema, que não sabemos qual será. É uma situação muito otimista no sentido de que, na situação em que nos encontramos, o que eu e você fizermos realmente importa. Isso não acontece quando vivemos num sistema que funciona perfeitamente bem. Nesse caso, investimos uma quantidade imensa de energia e, no fim, tudo volta a ser o que era antes. Um pequeno exemplo. Estamos na Rússia. Aqui aconteceu uma coisa chamada Revolução Russa, em 1917. Foi um enorme esforço social, um número incrível de pessoas colocou muita energia nisso. Fizeram coisas incríveis, mas no final, onde está a Rússia, em relação ao lugar que ocupava em 1917? Em muitos aspectos, está de volta ao mesmo lugar, ou mudou muito pouco. A mesma coisa poderia ser dita sobre a Revolução Francesa.
– O que isso diz sobre a importância das escolhas pessoais?
– A situação muda quando você está em uma crise estrutural. Se, normalmente, muito esforço se traduz em pouca mudança, nessas situações raras um pequeno esforço traz um conjunto enorme de mudanças – porque o sistema, agora, está muito instável e volátil. Qualquer esforço leva a uma ou outra direção. Às vezes, digo que essa é a “historização” da velha distinção filosófica entre determinismo e livre-arbítrio. Quando o sistema está relativamente estável, é relativamente determinista, com pouco espaço para o livre-arbítrio. Mas, quando está instável, passando por uma crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante. As ações de cada um realmente importam, de uma maneira que não se viu nos últimos 500 anos. Esse é meu argumento básico.
– Você sempre apontou Karl Marx como uma de suas maiores influências. Você acredita que ele ainda seja tão relevante no século XXI?
– Bem, Karl Marx foi um grande pensador no século XIX. Ele teve todas as virtudes, com suas ideias e percepções, e todas as limitações, por ser um homem do século XIX. Uma de suas grandes limitações é que ele era um economista clássico demais, e era determinista demais. Ele viu que os sistemas tinham um fim, mas achou que esse fim se dava como resultado de um processo de revolução. Eu estou sugerindo que o fim é reflexo de contradições internas. Todos somos prisioneiros de nosso tempo, disso não há dúvidas. Marx foi um prisioneiro do fato de ter sido um pensador do século XIX; eu sou prisioneiro do fato de ser um pensador do século XX.
– Do século 21, agora…
– É, mas eu nasci em 1930, eu vivi 70 anos no século XX, eu sinto que sou um produto do século XX. Isso provavelmente se revela como limitação no meu próprio pensamento.
– Quanto – e de que maneiras – esses dois séculos se diferem? Eles são realmente tão diferentes?
– Eu acredito que sim. Acredito que o ponto de virada deu-se por volta de 1970. Primeiro, pela revolução mundial de 1968, que não foi um evento sem importância. Na verdade, eu o considero o evento mais significantes do século XX. Mais importante que a Revolução Russa e mais importante que os Estados Unidos terem se tornado o poder hegemônico, em 1945. Porque 1968 quebrou a ilusão liberal que governava o sistema mundial e anunciou a bifurcação que viria. Vivemos, desde então, na esteira de 1968, em todo o mundo.
– Você disse que vivemos a retomada de 68 desde que a revolução aconteceu. As pessoas às vezes dizem que o mundo ficou mais valente nas últimas duas décadas. O mundo ficou mais violento?
– Eu acho que as pessoas sentem um desconforto, embora ele talvez não corresponda à realidade. Não há dúvidas de que as pessoas estavam relativamente tranquilas quanto à violência em 1950 ou 1960. Hoje, elas têm medo e, em muitos sentidos, têm o direito de sentir medo.
– Você acredita que, com todo o progresso tecnológico, e com o fato de gostarmos de pensar que somos mais civilizados, não haverá mais guerras? O que isso diz sobre a natureza humana?
– Significa que as pessoas estão prontas para serem violentas em muitas circunstâncias. Somos mais civilizados? Eu não sei. Esse é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.
– É isso que vemos hoje? O Ocidente tentando ensinar os bárbaros de todo o mundo?
– É o que vemos há 500 anos.

segunda-feira, outubro 17, 2011

Soledad Barrett Viedma, quem é essa mulher?


Soledad, a mulher do Cabo Anselmo

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. O artigo é de Urariano Mota.

Nota da Redação: O programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, entrevista nesta segunda, às 22 horas, o ex-militar José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, ex-participante de um motim na Marinha, nos anos 60, que, após um período de exílio em Cuba, voltou para o Brasil, foi preso e delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS. A lista de denunciados incluiu sua companheira, Soledad Viedma, que acabou torturada e morta pela ditadura. A TV Cultura escolheu o Cabo Anselmo como entrevistado para marcar a estreia de Mario Sergio Conti, ex-diretor da Veja e atual diretor de redação da revista Piauí, na condução do programa. 

A escolha se dá justo no momento em que se discute no Brasil a instalação da Comissão da Verdade, que enfrenta muita resistência de setores que insistem em manter na penumbra fatos ocorridos em um dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil. Publicamos a seguir um artigo do escritor Urariano Mota, autor de um livro sobre Soledad Viedma. 


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Em 1970, de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. A lista de denuciados incluía sua namorada, Soledad Viedma, que acabou morta devido à tortura. 

Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento explicar.

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo. 

Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques, vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza? 

E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê?

Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político: 

“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto. 

Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:

‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.

Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.

Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar. 

(*) Urariano Mota, 59 anos, é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).
CARTA MAIOR


quinta-feira, outubro 13, 2011

O Nome da História



A eremita trouxe as xícaras de chá e sentou-se de frente para o adolescente na mesa de madeira debaixo da pérgula, junto de onde ele tinha deixado a bicicleta. Tomaram um gole em sincronia e resvalaram numa página de silêncio enquanto observavam o ocre sem limites de Val d’Orcia.
– Em que você está pensando? – ela disse.
– Que talvez Deus não exista.
Ele tomou mais um gole, mas ela franziu um pouco a testa e não soube preservar o silêncio que ele talvez esperasse.
– Eu às vezes oro para que Deus não exista – ela disse de repente, a xícara junto ao peito como uma vela numa procissão.
– Como assim?
– Não sei. Às vezes penso que seria belíssimo se Deus fosse uma invenção dos homens.
– Não sei – ele coçou a barba rala. – Eu preferia que Deus fosse mais importante do que uma boa alucinação.
– É que – ela gastou um instante juntando palavras para descrever o irromper de sangue que trazia dentro do peito – isso se ajustaria perfeitamente ao Deus que eu gostaria de adorar e servir. Um Deus que se permitisse criar. Que se permitisse aperfeiçoar.
– Mas, que se fosse assim, seria para sempre subalterno aos homens.
– Não vejo porquê – ela foi sincera. – Talvez tudo no universo seja subalterno aos homens, menos esse Deus.
– Você está de novo entrando em terreno de excomunhão.
– E você veio buscar companhia num eremitério – ela explicou, vagamente irritada.
E voltaram a habitar o silêncio. Ele arriscou olhá-la por um instante, depois fechou os olhos e meneou a cabeça para capturar o dia no cheiro do vento.
– Acho que tudo está ligado – ela não resistiu – a essa coisa humana de contar histórias. Histórias que tenham começo, meio e fim. O desejo de ouvir e contar histórias é parte da nossa própria estrutura. O homem é maior que os anjos, mas interrompe o que estiver fazendo para dobrar-se à superioridade da narrativa. O universo inteiro é menor que a menor parábola.
– Você está querendo dizer que Deus é uma ficção.
– Não, estou dizendo que as histórias podem ser indicação de Deus – ela corrigiu, e apertava a xícara entre os dedos como se o calor da tarde não bastasse para aquecê-la. – E que nós, seres humanos, somos feitos de tal forma que o universo é regido de acordo com as histórias que contamos. Quando as ficções mudam, o mundo muda em conformidade.
– Isso é porque contamos histórias para inventar um sentido para o mundo – ele conformou-se ao papel de antagonista que no rumo da conversa ela havia destinado para ele. – A ficção dá a ordenação que o mundo por si mesmo não tem. Para ouvir histórias é preciso contribuir com uma espécie de “submissão experimental”, uma ingenuidade assumida de caso pensado. Fazemos isso na esperança de encontrar um sentido para a coisa toda. O que você está dizendo é que Deus não passa do resultado mais elevado desse tipo de experimentação. A maior história jamais contada, por assim dizer.
– Quero dizer que acho que Deus existe mesmo, mas que só se manifesta na ficção.
– O que é absurdo – ele disse, e imediatamente lamentou não ter um argumento melhor para interpor.
Ele mudou de posição no banco e uma perna roçou por um instante a meia preta dela. Ela recuou imediatamente, mas mais por coordenação fraternal do que por verdadeiro constrangimento. Nunca falariam a respeito disso, mas sabiam que não fosse a diferença abismal de idade teriam juntos explorado em redemoinho as camas do verão. Nem os votos dela nem o constrangimento dele teriam se colocado no caminho.
– E há algo sobre Deus que não seja absurdo? A ortodoxia, que é conservadora, insiste nisso. A liturgia. Nossa amizade é absurda.
Ele tomou o último gole e afastou a xícara para o centro da mesa. Depois alçou uma perna para cima do banco, apertou-a junto do corpo e apoiou o queixo no joelho. Ela olhava com um vago sorriso para um ponto no ar.
– Estou aqui tentando lembrar o nome de uma história de Jorge Luis Borges sobre um agente secreto num país estrangeiro que mata um homem só por causa do nome dele. Eles conversam um pouco sobre destino, vida e morte e depois o sujeito mata esse civil desconhecido só porque o nome dele, quando a notícia do assassinato saísse no jornal, serviria de senha para que a organização do agente deslanchasse alguma mobilização de guerra.
– E por que você quer lembrar o nome da história?
– Não sei. É que a ideia do conto se tornou de imediato uma obsessão para mim, essa de matar uma pessoa só para passar uma mensagem – ela finalmente olhou diretamente para ele. – Você me mataria para passar uma mensagem? Como posso saber se você não tem um revólver nessa mochila?
– Você não tem o nome certo – ele disse, e procurou o horizonte. – Não é a mensagem que eu quero passar.
Ela baixou a cabeça e sorriu, imediatamente irritada por ter se permitido irritar tão facilmente. Ela às vezes esquecia que ele era homem, mas isso só até que ele a fizesse lembrar do jeito mais inequívoco. Que os homens cedessem tão facilmente ao seu próprio arquétipo era, por si mesmo, o grande arquétipo masculino.
– A pergunta que você na verdade quer me fazer – ele adivinhou, – é se eu mataria Deus para passar uma mensagem.
E olhou para ela.
– A pergunta que eu quero fazer – ela exigiu, muito empertigada, – é se Deus se deixaria matar para passar uma mensagem.

Bacia das Almas

terça-feira, outubro 11, 2011

Rafinha dançou por mexer com gente rica



Rafinha dançou por mexer com gente rica

O integrante do CQC, que fez piada de péssimo gosto com Wanessa Camargo, já falara coisas piores. Agora mexeu com esposa de milionário, que ameaçou tirar anúncios da TV Bandeirantes. Ninguém classificou caso como atentado à liberdade de expressão. Já quando ministra condena comercial de lingerie machista, o coro é um só: “Censura”!
Qual é o problema com a suposta piada de Rafinha Bastos? Ele antes já exibira todas as cores de seu mau gosto e nada acontecera.
Gilberto Maringoni: Rafinha dançou por mexer com gente ricaTodos conhecem a pérola, não? O apresentador aproveitou-se de uma bola levantada pelo chefe da cena do programa Custe o que Custar (CQC), Marcelo Tas, sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, e cortou ligeiro: “Eu comeria ela e o bebê, não tô nem aí”. Foi logo acompanhado por risos e caretas de seus colegas de vídeo, Tas e Marco Luque .
A grosseria foi ao ar dia 19 de setembro. A TV Bandeirantes, que exibe o programa, levou duas semanas para decidir o que fazer. Em 3 de outubro, o apresentador foi suspenso da bancada. Não se sabe se voltará.
Não foi a primeira vez que Rafinha exerceu sua – digamos – sutileza. Em entrevista à revista Rolling Stone, em maio de 2011, ele saiu-se com esta: “Mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade”.
A gracinha com as feias não rendeu ao gaúcho de dois metros de altura nada além de protestos de movimentos femininos. Mas a liberdade com a cantora custou-lhe até agora, além do posto no programa, o cancelamento de shows e o rompimento de alguns contratos de publicidade. Rafinha perdeu grana com a brincadeira.
Pensamento vivo
Repetindo: qual o problema com as tiradas do rapaz de 34 anos, num universo midiático em que o mau gosto, a boçalidade e o “politicamente incorreto” passaram a ser valores em si?
Rafinha vive num tempo em que as demonstrações de preconceito, como as do apresentador de outro programa de entretenimento da mesma emissora, Boris Casoy, não têm consequências maiores. Todos se recordam da fineza do jornalista ao desqualificar dois garis que apareceram em seu programa para desejar boas festas, no final de 2009. Sem saber que os microfones estavam abertos, ele foi ao ponto: “Que merda: dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”.
O artista do CQC também sabe que o pensamento vivo de gente como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) recebe destacada acolhida em grandes meios de comunicação. Sua entrevista à revista Playboy  , em junho último, é pródiga em preciosidades. Segue um exemplo: “Moro num condomínio, de repente vai um casal homossexual morar do meu lado. Isso vai desvalorizar minha casa!”.
Outro luminar da intelectualidade midiática, o ex-compositor Lobão, por sua vez, exibiu os músculos cerebrais em um festival de cultura em São Francisco Xavier (São José dos Campos, SP), também em junho. Após demonstrar criteriosamente que toda a música popular brasileira não tem nenhum valor, ele sentenciou: “A gente tinha que repensar a ditadura militar. Essa Comissão da Verdade que tem agora. (…) Que loucura que é isso? Aí tem que ter anistia pros caras de esquerda que sequestraram o embaixador, e pros caras que torturavam, arrancavam umas unhazinhas, não?”.
Os exemplos são infindáveis. Rafinha provavelmente é leitor de Reinaldo Azevedo, o blogueiro de Veja, que, em março de 2010, durante uma palestra no afamado Instituto Millenium, em São Paulo, externou sua particular concepção de liberdade de expressão: “A imprensa tem que acabar com o isentismo e o outroladismo, essa história de dar o mesmo espaço a todos”. Na mesma oportunidade, o cineasta aposentado Arnaldo Jabor lançou o desafio de “impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo”. Impedir o pensamento… muito bom!
A baixaria televisiva contaminou até mesmo as campanhas eleitorais. Continuam na memória de todos os ataques da campanha de José Serra à Dilma Rousseff, em 2010, sobre o tema do aborto. Em Nova Iguaçu (RJ), Monica Serra, esposa do então candidato tucano, disse o seguinte sobre a petista: “Ela é a favor de matar as criancinhas”.
Dois anos antes, a campanha de Marta Suplicy (PT) à prefeitura de São Paulo já havia colocado en dúvida a sexualidade de seu oponente, ao  dizer: “Você sabe mesmo quem é o Kassab? Sabe de onde ele veio? Qual a história do seu partido?” Em seguida, aparece a foto do prefeito: “Sabe se ele é casado? Tem filhos?”
Bem acompanhado
Rafinha está em boa companhia. Deve se sentir incentivado para exercer seu rosário de preconceitos. Provavelmente pensa estar “quebrando paradigmas”, investindo contra o estabelecido e externando uma rebeldia adolescente, que lhe granjeia grande popularidade e bons cachês.
Ridicularizar e humilhar quem tem poucas chances de se defender, em uma sociedade com desigualdades abissais como a brasileira, é um grande negócio. Prova isso a lista de clientes dos shows do moço, que constam de sua página na internet. São elas Votorantim, Bosch, Agroceres, LG, HP, Ernst & Young, IBM, Banco Real, Vivo, Springer Carrier, Cargil, Unilever, Motorola, Chevrolet, Sherwin Williams, Valor Econômico, Bunge, GNT (Globosat), Jornal O Estado de S. Paulo, Coca-Cola, Bradesco, ESPM etc. Segundo a Veja, ele foi visto em mais de 730 comerciais somente neste ano.
Rafinha faz parte de uma tendência do humor televisivo, que se abriu após a chegada dos humoristas do Casseta e Planeta ao vídeo. A linhagem envolve também o programa Panico (da Rede TV!) e outros imitadores, além do Zorra Total, da Globo. Todos se dizem distantes da política, independentes e praticantes de um humor anárquico e sem freios. Nem mesmo a participação de Marcelo Tas comopalestrante em um encontro da juventude do DEM ,em novembro de 2008, ou de Marcelo Madureira nas palestras hidrófobas do Instituto Millenium, os comprometem, segundo eles, com idéias que não as próprias.
Acima da cintura
Num panorama desses, repetimos: qual o problema de Rafinha Bastos?
O problema é que o garoto bateu acima da cintura.
Tudo bem desancar garis, a esquerda que foi à luta nos anos da ditadura, exaltar a parcialidade da imprensa e atacar homossexuais e outros grupos vulneráveis.
Não pode é investir contra o topo da pirâmide social.
Rafinha cometeu esse pecado. Wanessa Camargo é casada com Marcus Buaiz, 31 anos, herdeiro de um dos maiores conglomerados empresariais do Espírito Santo, o Grupo Buaiz, que completa 70 anos em 2012. O grupo é formado pela TV Vitória (afiliada da Rede Record), por duas rádios, pelo Nova Cidade Shopping Center, por várias empresas de alimentação (Café Número Um, Moinho Três Rios e Moinho Vitória), pela Buaiz Importação e Exportação, pela incorporadora Meca e pela Automóbile Comércio de Veículos, entre outras.
Marcus Buaiz transferiu-se para São Paulo, onde é proprietário de casas noturnas e restaurantes, além de uma empresa de marketing esportivo, a 9INE, em parceria com o ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Segundo o jornal A Gazeta, de Vitória, o empresário e seu sócio teriam ameaçado tirar anúncios do programa, após a performance de Rafinha Bastos. “Um comercial de 30 segundos no CQC custa 130 mil reais. Já um merchandising pode custar de 240 mil a dois milhões e 400 mil reais, sem incluir cachês”, diz a publicação.
Com tudo isso, a Bandeirantes podou Rafinha Bastos de sua programação.
Dois pesos
O curioso da história é que intenção semelhante, de retirada de um comercial de lingerie do ar, por parte da ministra da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, Iriny Lopes (PT), foi classificada como censura por colunistas de imprensa e até por colegas seus na Esplanada dos Ministérios.
Na peça, em três versões, Gisele Bundchen faz as vezes de uma esposa prestes a dar uma péssima notícia ao marido: estourou o limite do cartão de crédito, bateu o carro ou informa que sua mãe virá morar com eles. É um machismo digno dos anos 1950. Os publicitários da agência Giovanni+DraftFCB devem ter achado o máximo a própria criação. No clima de boçalidade modernosa, não há problema na mulher bonita, mas dependente do marido provedor, invocar seus atributos eróticos para conseguir o que quer.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, a representante governista assim se manifestou: “A propaganda caracteriza como correto a mulher dar uma notícia ruim apenas de lingerie e errado estar vestida normalmente. Essa definição de certo e errado caracteriza um sexismo atrasado e superado”.
A ação da ministra está a quilômetros de distância das ameaças que teriam sido feitas pelo marido de Wanessa Camargo ou pela ação da Bandeirantes, que sem mais tirou Rafinha do ar. Iriny apenas solicitou ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) a suspensão da peça publicitária.
O mundo desabou sobre sua cabeça, com insinuações sobre estética feminina e inveja da modelo.
O caso Rafinha Bastos é pedagógico. No Brasil, além das mulheres, qualquer minoria pode ser atacada. Menos uma: a minoria dos endinheirados.