Quando alguns personagens participam de determinadas discussões, inevitavelmente são vítimas de ataques que se repetem: sofrem de transtornos emocionais (recalque, inveja, ressentimento, ódio etc.), não possuem senso de humor, são desmedidos, são paranoicos pois veem o que não existe, são politicamente corretos. No debate acerca de uma campanha publicitária da marca de lingerie Hope, estrelada por Gisele Bündchen, contra as feministas, como previsível, foram desferidos todos esses ataques. É uma medíocre tática de desqualificação contra quem realiza uma crítica, mas que goza de um amplo apelo.
Começo pela contracrítica à (suposta) correção política dos enunciados feministas, que aparenta ser fundamentada e relevante. Afirmar que alguém é politicamente correto consiste, em geral, não apenas em uma reprovação, mas também em uma ofensa. Por conseguinte, quem adota uma atitude socialmente rotulada como politicamente correta, como a defesa de uma minoria, tende a não querer ser julgado como um indivíduo politicamente correto. Afinal, correção política significa sobretudo estupidez, caretice e patrulhamento. Ninguém parece querer ser politicamente correto. Em contrapartida, a incorreção política costuma ser valorizada, o indivíduo politicamente incorreto é reputado como ousado, iconoclasta, transgressivo, cool.
O primeiro problema é que aparentamos não saber muito bem o que seja correção e incorreção políticas. ‘Politicamente correto’, ‘politicamente incorreto’ se tornaram significantes disponíveis, que se aplicam indiscriminadamente a indivíduos os mais diferentes, aos mais variados discursos e práticas. A inversão à qual me que referi é um indício dessa confusão semântica. A denúncia contra discursos e práticas que legitimam e reproduzem situações de discriminação, exclusão e opressão, ao invés de ser considerada crítica e potencialmente contestadora, é recepcionada, contraditoriamente, como retrógrada e autoritária. Contudo, embora pense que a incorreção política está a serviço da conservação do status quo, não estou advogando em defesa da correção política.
Duas dimensões estão compreendidas na correção política.
Primeira. Uma preocupação – surgida entre a esquerda estadunidense, nas décadas de 1980 e 1990, no decurso das guerras culturais e relacionada às políticas identitárias – com o vocabulário e a enunciação, com o conteúdo daquilo que é enunciado e com a maneira pela qual é enunciado. Essa preocupação – adjetivada pela direita estadunidense, em tom sarcástico e pejorativo, de politicamente correta – se prolonga em uma preocupação com a conduta, com os modos de tratamento dispensados a indivíduos pertencentes a grupos tradicionalmente discriminados, excluídos e oprimidos, como pobres e miseráveis, mulheres, negros, índios, homossexuais, bissexuais e transgêneros, fiéis de certas confissões, estrangeiros etc. Essa primeira dimensão é a própria definição, que se obscureceu, de correção política – ainda que, originalmente, não tivesse esse nome.
Em um artigo no Amálgama, “Ser ou não ser politicamente incorreto, eis a não-questão”, meu amigo Daniel Lopes ponderou que, com frequência, a incorreção política é errada, mas que, muitas vezes, é também indispensável. A crítica e a discordância ao senso comum e ao dogmatismo intelectual, posturas que ele qualifica como politicamente incorretas, são, muito simplesmente, apenas crítica e discordância ao senso comum e ao dogmatismo intelectual. Não é preciso lhes conferir o estatuto de incorreção política para se ressaltar sua importância, ou melhor, sua imprescindibilidade. A crítica ao que Daniel denomina o cânone relativista, constituído, de acordo com ele, por autores como Herbert Marcuse e Michel Foucault, não é uma atitude politicamente incorreta. A predominância de alguns pensadores e de determinados conceitos e ideias, no panorama intelectual de uma sociedade em certa época, é um fenômeno recorrente e mais bem compreendido não pelo termo correção política, mas por um termo antigo, doxa. Refutar a recepção acrítica e a mera repetição de conceitos e ideias não é confrontar o pensamento politicamente correto, mas a doxa. Por fim, um dos exemplos oferecidos por Daniel me parece em franco conflito com seu entendimento da correção e da incorreção políticas, o que ressalta a fluidez e a vaguidade de ambas as expressões. Nos seus próprios termos, soa incongruente que ele caracterize (positivamente) Nelson Mandela como politicamente correto. Na África do Sul do regime do apartheid, Mandela foi um crítico da ideologia e da política de Estado racistas, ou seja, um crítico do senso comum. Sua voz enunciava o fora do comum, o inesperado, o inaceitável. Mandela, consoante o significado que Daniel atribui ao termo, era politicamente incorreto.
A primeira dimensão da correção política pode ser adequadamente definida, de forma simples, como civilidade, polidez. Não é por acaso que comediantes como Danilo Gentili e Rafael Bastos são comumente escarnecidos como crianças mal-educadas, moleques sem-vergonha. O que hoje é ensinado como correção política eu aprendi, na infância, como o nome de boa educação, boas maneiras. Aprendi, por exemplo, que eraerrado e por que era errado chamar de crioulo, macaco uma criança ou um adulto negro. (Lamentavelmente, naquela época não se ensinava e hoje poucos pais e professores ensinam que não se deve chamar de mulherzinha, mariquinha, bichinha, veadinho um menino efeminado ou que tenha interesse pelo universo feminino.) Em entrevista a Marília Gabriela, no programa De Frente com Gabi, Danilo Gentili – atenção: é somente uma piada! – devido talvez a sua óbvia incapacidade intelectual para argumentar em defesa do seu estilo de ‘humor’, utilizou uma frase de efeito, pretensamente autoevidente: “Toda piada é preconceituosa”. Discordo da generalidade absoluta da assertiva, refutável, mas considero que preconceituosa, e não politicamente incorreta, é uma boa qualificação para o conteúdo de sua ‘piada’ sobre a recusa de parcela dos moradores de Higienópolis, onde residem muitos judeus e descendentes de judeus, à instalação de uma estação do metrô no bairro: “Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. Eu complementaria: antissemita, desprovida de empatia, insensível, estúpida, grosseira, vulgar, horrível. Na medida em que não são vagas como a palavra politicamente incorreto, todas essas adjetivações apresentam também a vantagem de não serem eufemísticas e anódinas.
(...)
Segunda. A segunda dimensão da correção política, ideológica, é muito mais problemática. A mera preocupação com o vocabulário e a enunciação e com a conduta e os modos de tratamento não é suficiente para promover a transformação social. O problema é que a correção política, ou pelo menos aquilo que há muito tempo se designa por esse nome, não consegue transpor os limites dessa preocupação. Tudo se passa como se, ao se utilizar essa palavra ao invés daquela, ao se agir de tal maneira ao invés daquela, o mundo fabulosamente se tornasse um lugar melhor. Como afirma um slogan político politicamente correto hoje em voga: “Quando você muda, o mundo muda com você”. Tanto quanto a incorreção, a correção política também está a serviço da manutenção do status quo, porquanto não promove a modificação das estruturas. A dispensa de um tratamento respeitoso a, por exemplo, uma mulher negra e pobre é inegociável. Não obstante, o tratamento pode estar baseado não no reconhecimento da alteridade, mas em uma atitude condescendente. Ademais, é possível, como nós ocidentais comprovamos generosamente nos últimos séculos, discriminar, excluir e oprimir o outro com civilidade. O tratamento polido, conquanto fundado em uma postura de reconhecimento da alteridade, não resolve os problemas do sexismo, da pobreza e do racismo. Pela ênfase exclusiva nos resultados visíveis e não nos processos, a correção política promove o ocultamento das causas dos problemas, contribuindo para a reprodução das estruturas discriminatórias, excludentes e opressoras.
Em 2009, um anúncio das Havaianas também ensejou a instauração de um processo ético no CONAR, por reclamações de espectadores. No filme, uma avó sugere à neta que ela deveria arrumar um rapaz como o ator Cauã Reymond. A moça não demonstra muito interesse, refletindo que deve ser muito chato ser casada com um homem famoso. A avó então explica que não estava falando de casamento, mas de sexo. A empresa retirou o comercial do ar antes da conclusão do processo. Dependendo da perspectiva que se adote, o anúncio e os espectadores que reclamaram podem ser considerados politicamente corretos ou politicamente incorretos. Esse caso, que ressalta a ambiguidade de cada um dos polos que constituem o binarismo correção e incorreção políticas, evidencia que, em uma sociedade fundada na dominação masculina, o corpo feminino é mudo. Quando adquire voz, quando cessa de se limitar a vocalizar a voz masculina, quando se torna um corpo de mulher, se torna perigoso. As imagens que naturalizam a mulher como amélia são uma brincadeira, são divertidas, despretensiosas. Os comerciais que reproduzem essas imagens são muitos, o da Hope foi apenas um em que os signos, muitas vezes discretos, se apresentaram com demasiada explicitude. A censura à avó contemporânea, confiante e independente, não provocou comoção. Em contrapartida, nos momentos em que as vozes feministas se tornam audíveis, para afirmar que não se veem e não querem se ver em uma imagem que naturaliza a condição de submissão da mulher ao homem, não somente devem ser silenciadas como se torna necessário produzir a crença que são as vozes dos opressores.
Texto na íntegra: http://www.amalgama.blog.br/10/2011/sexismo-incorrecao-politica-gisele-bundchen-hope/
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