A eremita trouxe as xícaras de chá e sentou-se de frente para o adolescente na mesa de madeira debaixo da pérgula, junto de onde ele tinha deixado a bicicleta. Tomaram um gole em sincronia e resvalaram numa página de silêncio enquanto observavam o ocre sem limites de Val d’Orcia.
– Em que você está pensando? – ela disse.
– Que talvez Deus não exista.
Ele tomou mais um gole, mas ela franziu um pouco a testa e não soube preservar o silêncio que ele talvez esperasse.
– Eu às vezes oro para que Deus não exista – ela disse de repente, a xícara junto ao peito como uma vela numa procissão.
– Como assim?
– Não sei. Às vezes penso que seria belíssimo se Deus fosse uma invenção dos homens.
– Não sei – ele coçou a barba rala. – Eu preferia que Deus fosse mais importante do que uma boa alucinação.
– É que – ela gastou um instante juntando palavras para descrever o irromper de sangue que trazia dentro do peito – isso se ajustaria perfeitamente ao Deus que eu gostaria de adorar e servir. Um Deus que se permitisse criar. Que se permitisse aperfeiçoar.
– Mas, que se fosse assim, seria para sempre subalterno aos homens.
– Não vejo porquê – ela foi sincera. – Talvez tudo no universo seja subalterno aos homens, menos esse Deus.
– Você está de novo entrando em terreno de excomunhão.
– E você veio buscar companhia num eremitério – ela explicou, vagamente irritada.
E voltaram a habitar o silêncio. Ele arriscou olhá-la por um instante, depois fechou os olhos e meneou a cabeça para capturar o dia no cheiro do vento.
– Acho que tudo está ligado – ela não resistiu – a essa coisa humana de contar histórias. Histórias que tenham começo, meio e fim. O desejo de ouvir e contar histórias é parte da nossa própria estrutura. O homem é maior que os anjos, mas interrompe o que estiver fazendo para dobrar-se à superioridade da narrativa. O universo inteiro é menor que a menor parábola.
– Você está querendo dizer que Deus é uma ficção.
– Não, estou dizendo que as histórias podem ser indicação de Deus – ela corrigiu, e apertava a xícara entre os dedos como se o calor da tarde não bastasse para aquecê-la. – E que nós, seres humanos, somos feitos de tal forma que o universo é regido de acordo com as histórias que contamos. Quando as ficções mudam, o mundo muda em conformidade.
– Isso é porque contamos histórias para inventar um sentido para o mundo – ele conformou-se ao papel de antagonista que no rumo da conversa ela havia destinado para ele. – A ficção dá a ordenação que o mundo por si mesmo não tem. Para ouvir histórias é preciso contribuir com uma espécie de “submissão experimental”, uma ingenuidade assumida de caso pensado. Fazemos isso na esperança de encontrar um sentido para a coisa toda. O que você está dizendo é que Deus não passa do resultado mais elevado desse tipo de experimentação. A maior história jamais contada, por assim dizer.
– Quero dizer que acho que Deus existe mesmo, mas que só se manifesta na ficção.
– O que é absurdo – ele disse, e imediatamente lamentou não ter um argumento melhor para interpor.
Ele mudou de posição no banco e uma perna roçou por um instante a meia preta dela. Ela recuou imediatamente, mas mais por coordenação fraternal do que por verdadeiro constrangimento. Nunca falariam a respeito disso, mas sabiam que não fosse a diferença abismal de idade teriam juntos explorado em redemoinho as camas do verão. Nem os votos dela nem o constrangimento dele teriam se colocado no caminho.
– E há algo sobre Deus que não seja absurdo? A ortodoxia, que é conservadora, insiste nisso. A liturgia. Nossa amizade é absurda.
Ele tomou o último gole e afastou a xícara para o centro da mesa. Depois alçou uma perna para cima do banco, apertou-a junto do corpo e apoiou o queixo no joelho. Ela olhava com um vago sorriso para um ponto no ar.
– Estou aqui tentando lembrar o nome de uma história de Jorge Luis Borges sobre um agente secreto num país estrangeiro que mata um homem só por causa do nome dele. Eles conversam um pouco sobre destino, vida e morte e depois o sujeito mata esse civil desconhecido só porque o nome dele, quando a notícia do assassinato saísse no jornal, serviria de senha para que a organização do agente deslanchasse alguma mobilização de guerra.
– E por que você quer lembrar o nome da história?
– Não sei. É que a ideia do conto se tornou de imediato uma obsessão para mim, essa de matar uma pessoa só para passar uma mensagem – ela finalmente olhou diretamente para ele. – Você me mataria para passar uma mensagem? Como posso saber se você não tem um revólver nessa mochila?
– Você não tem o nome certo – ele disse, e procurou o horizonte. – Não é a mensagem que eu quero passar.
Ela baixou a cabeça e sorriu, imediatamente irritada por ter se permitido irritar tão facilmente. Ela às vezes esquecia que ele era homem, mas isso só até que ele a fizesse lembrar do jeito mais inequívoco. Que os homens cedessem tão facilmente ao seu próprio arquétipo era, por si mesmo, o grande arquétipo masculino.
– A pergunta que você na verdade quer me fazer – ele adivinhou, – é se eu mataria Deus para passar uma mensagem.
E olhou para ela.
– A pergunta que eu quero fazer – ela exigiu, muito empertigada, – é se Deus se deixaria matar para passar uma mensagem.
Bacia das Almas
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