Por Valter Pomar*
A crise internacional dos anos 1970, mais exatamente a atitude dos EUA para enfrentar esta crise, desencadeou no mundo e na região ALC um processo regressivo, caracterizado pelo colapso da social-democracia européia, dos nacionalismos africanos, dos desenvolvimentismos latinoamericanos e do socialismo de tipo soviético; e, ainda, marcado pela crise da dívida externa e pela ascensão do neoliberalismo.
Nas décadas de 1980 e 1990, o neoliberalismo tornou-se hegemônico na América Latina, acentuando a dependência, a desigualdade e o conservadorismo político característicos do período anterior.
Na América Latina, nos anos 1990, a defesa dos interesses nacionais, populares, democráticos e socialistas entrou numa etapa de defensiva estratégica. Noutras palavras: num contexto marcado pela crise do socialismo e pela ofensiva neoliberal, tratava-se de defender as conquistas obtidas no período anterior.
A partir da segunda metade dos anos 1990, esta situação de defensiva estratégica das forças populares coincidiu com um período de grande instabilidade internacional, decorrente da combinação entre dois fenômenos: a crise do capitalismo e o declínio da hegemonia dos EUA.
Temos, de um lado, uma crise de acumulação, que se manifesta direta ou indiretamente em todos os terrenos: financeiro, comercial, cambial, energético, alimentar, ambiental.
De outro lado, temos a reacomodação geopolítica, resultante: a) das dificuldades que os Estados Unidos enfrentam para manter sua hegemonia mundial; b) do aguçamento das contradições inter capitalistas, crescentes após a derrota do bloco soviético; c) do fortalecimento de potências concorrentes, especialmente a China.
Este período de grande instabilidade internacional, causado pela combinação entre os fenômenos geopolíticos e macroeconômicos acima citados, é e continuará sendo marcado por crises, guerras e revoltas sociais.
Não é possível saber quanto tempo durará este período de instabilidade internacional. Isto, bem como o mundo que emergirá depois, dependerá de como se articule a luta política, dentro de cada país, com a luta entre Estados e blocos regionais.
A luta entre Estados e blocos regionais é, hoje, polarizada de um lado pelos Estados Unidos e seus aliados europeus e japoneses; de outro lado, pelos BRICS e seus aliados.
Diferente do que ocorria antes de 1945, hoje temos uma disputa entre Estados da (quase) antiga periferia e Estados do (quase) antigo centro. E, diferente do que ocorria antes de 1990, hoje trata-se de uma disputa nos marcos do capitalismo.A América Latina é um dos cenários desta disputa entre os Estados Unidos e os BRICS. Do ponto de vista geopolítico, considerando o médio e longo prazo, há pelo menos três cenários possíveis. No primeiro deles, os Estados Unidos mantém sua condição de potência hegemônica mundial e regional. No segundo deles, os Estados Unidos perdem sua condição de hegemonia mundial, mas se mantém
como potência regional. No terceiro cenário, o mais favorável para ALC, os Estados Unidos deixam de ser potência hegemônica mundial e também deixam de ser potência hegemônica regional.
como potência regional. No terceiro cenário, o mais favorável para ALC, os Estados Unidos deixam de ser potência hegemônica mundial e também deixam de ser potência hegemônica regional.
A disputa EUA/BRICS se dá nos marcos do capitalismo. Mas na ALC há uma variável excêntrica a ser levada em conta: como resultado de um processo iniciado em 1998, constituiu-se na região uma forte influência da esquerda.
Esta influência da esquerda torna factível que a ALC constitua-se, não um cenário passivo, mas um dos pólos do combate de natureza geopolítica que está em curso no mundo. Assim como torna factível fazer, da região, um dos espaços de reconstrução de uma alternativa socialista ao capitalismo.
Para transformar estas duas possibilidades em realidade, a esquerda de ALC terá que enfrentar vários desafios teóricos, estratégicos e táticos.
O primeiro destes desafios é derrotar o contra-ataque promovido pela direita latino-americana e seus aliados metropolitanos.
O segundo e o terceiro desafio da esquerda político-social de ALC consistem em: a) não perder os governos nacionais conquistados até agora; b) conquistar novos governos nacionais.
O quarto desafio da esquerda político-social é, nos países onde controla o governo nacional, impulsionar mudanças estruturais de natureza democrático-popular.
Se a esquerda no governo não for capaz de realizar ou ao menos dar passos no sentido destas reformas, ele não possui significado estratégico, por mais que no imediato contribua para melhorar a vida do povo. E a não realização de tais reformas pode decepcionar e dividir os apoiadores da esquerda, como em parte ocorreu no Chile, com a Concertación.
Mas para realizar reformas estruturais (ou pelo menos para acumular forças neste sentido), um governo de esquerda precisa de sustentação política, sem o que ele pode ser derrubado, como ocorreu com o governo de Honduras.
Para dar conta do quarto desafio, portanto, a esquerda político-social não pode ir muito rápido, nem pode ir muito devagar. Para isto, precisa considerar adequadamente a correlação de forças, através da análise concreta da situação concreta. E precisa retomar o debate estratégico aberto pela experiência da Unidade Popular chilena.
O quinto desafio da esquerda político-social de ALC é acelerar o processo de integração, fundamental para aproveitar o potencial da região e também para reduzir a ingerência imperialista. Um sexto desafio é tornar hegemônica, na região, uma cultura popular latinoamericana e caribenha. Pois a verdade é que o
american way of life segue culturalmente hegemônico, mesmo que os EUA estejam fortemente questionados do ponto de vista político.
american way of life segue culturalmente hegemônico, mesmo que os EUA estejam fortemente questionados do ponto de vista político.
O sétimo desafio diz respeito a ampliar a capacidade teórica e política das esquerdas latinoamericanas e caribenhas. Com destaque para a necessidade de ampliar a coordenação entre governos, partidos e movimentos sociais. Sem o que será cada vez mais difícil, seja enfrentar a direita no plano nacional, seja enfrentar os desafios da integração continental e da instabilidade mundial.
A reflexão teórica precisa enfrentar e superar três fatores negativos, que geram deformações sistêmicas na visão de mundo e nas formulações das diferentes famílias da esquerda na ALC:
1) a crise das alternativas nacionalistas, desenvolvimentistas, social-democratas e socialistas, combinada com a influência do neoliberalismo;
2) a importância assumida pelos processos eleitorais e pela participação na institucionalidade estatal;
3) a necessária construção de frentes poli-classistas, num contexto de enfraquecimento da classe trabalhadora, enquanto classe em si e para si.
1) a crise das alternativas nacionalistas, desenvolvimentistas, social-democratas e socialistas, combinada com a influência do neoliberalismo;
2) a importância assumida pelos processos eleitorais e pela participação na institucionalidade estatal;
3) a necessária construção de frentes poli-classistas, num contexto de enfraquecimento da classe trabalhadora, enquanto classe em si e para si.
Estes fatores negativos agiram de maneira distinta sobre cada família da esquerda, e sobre cada organização em particular. Podemos identificar, entretanto, três tendências que se fizeram presentes em todas as famílias e partidos: o centrismo, o utopismo e o movimentismo.
Na conjuntura dos anos 1990, fazer concessões (políticas e programáticas)
era inevitável, salvo para o esquerdismo fanático. Portanto, quando falamos (e criticamos) o centrismo, estamos nos referindo a organizações que fizeram concessões mais profundas, mudando de objetivos programáticos, de base social ou simplesmente adotando postura estrategicamente subalterna aos interesses de
setores da burguesia. Postura que foi predominante entre os que adotaram estratégias ditas de centro-esquerda.
era inevitável, salvo para o esquerdismo fanático. Portanto, quando falamos (e criticamos) o centrismo, estamos nos referindo a organizações que fizeram concessões mais profundas, mudando de objetivos programáticos, de base social ou simplesmente adotando postura estrategicamente subalterna aos interesses de
setores da burguesia. Postura que foi predominante entre os que adotaram estratégias ditas de centro-esquerda.
Em qualquer conjuntura, uma organização de esquerda necessita de alguma dose de voluntarismo romântico (ou utopismo, no sentido corrente da palavra), que fortaleça as convicções científicas e racionais, ao mesmo tempo que ajuda a recordar os objetivos de longo prazo. Portanto, quando falamos (e criticamos) o utopismo, estamos nos referindo a organizações que, no plano tático, adotam
uma postura de sistemática minimização da força de nossos inimigos; e que, no plano estratégico, adotam paradigmas pré-capitalistas.
uma postura de sistemática minimização da força de nossos inimigos; e que, no plano estratégico, adotam paradigmas pré-capitalistas.
Esta segunda característica é muito presente na esquerda boliviana
e equatoriana, mas não apenas.
e equatoriana, mas não apenas.
Um partido de esquerda que troca bases sociais organizadas, por bases eleitorais, está condenado à derrota ideológica, política e inclusive eleitoral. Motivo pelo qual a esquerda precisa, obrigatoriamente, tanto apoiar quanto fomentar a mobilização e organização de suas bases sociais. Portanto, quando falamos (e criticamos) o movimentismo, estamos nos referindo a uma concepção cripto-anarquista que subestima a importância da luta eleitoral e da participação em governos, neste período histórico; que mistifica e mitifica os chamados movimentos sociais; e que tende a converter, no plano das idéias, os movimentos sociais em vanguarda da luta contra o capitalismo.
Como resultado de tudo o que apontamos antes, a esquerda da ALC enfrenta, atualmente, grandes dificuldades para cumprir as duas tarefas básicas para quem deseja alterar o status quo: oferecer um mapa do caminho e coordenar o conjunto das frentes de atuação.
Especificamente no caso dos partidos de governo, é preciso também levar em conta que ganhar eleições e administrar países profundamente desiguais, com populações fortemente influenciadas pela mídia de massas, exige mobilizar o apoio de camadas populares mais propensas a seguir lideranças carismáticas, na contramão das indispensáveis direções coletivas.
Exige, também, grande quantidade de recursos financeiros, indispensáveis
em processos eleitorais em que o debate programático é fortemente tensionado pelo “comércio de voto”. O que gera um relacionamento com o Estado e com os setores empresariais que pode autonomizar, mesmo que parcialmente, estes partidos de suas bases sociais originais.
em processos eleitorais em que o debate programático é fortemente tensionado pelo “comércio de voto”. O que gera um relacionamento com o Estado e com os setores empresariais que pode autonomizar, mesmo que parcialmente, estes partidos de suas bases sociais originais.
Esta radicalização é, em parte, uma reação contra as brutais desigualdades estruturais; por outra parte, constitui uma resposta à radicalidade da oposição de direita, com suas campanhas de desqualificação, desestabilização e golpes.
Entretanto, a radicalidade política não implica que, nesses países, as condições macro e microeconômicas sejam as mais favoráveis à construção de um modelo econômico pós-neoliberal, nem muito menos de um modelo pós-capitalista.
A contradição entre as condições subjetivas e objetivas está na base do crescente conflito entre uma parte da base social original destes governos, com algumas das políticas desenvolvimentistas que estes mesmos governos são obrigados a executar. Dizemos obrigados, porque trata-se de responder tanto às demandas sociais acumuladas, quanto corresponder às necessidades futuras de médio e longo prazo.
Como o desenvolvimentismo realmente existente é de natureza capitalista, isso gera reações centristas (alianças estratégicas com o capital), movimentistas (reações setoriais contra determinadas políticas) e utopistas (rechaço esquerdista ao desenvolvimento diferentes famílias da esquerda). Tais divisões na base política e social dos governos, num cenário de dificuldades causadas pela crise internacional, podem gerar um cenário eleitoral favorável à oposição de direita.
Noutros países do continente, onde havia uma economia industrial diversificada, a resistência político-social conseguiu impor mais limites ao neoliberalismo, o Estado e o espectro político foram mais preservados.
Nestes países, os partidos anti-neoliberais que vencem as eleições têm muitos anos de vida, como é o caso do Partido dos Trabalhadores do Brasil (1980) e da Frente Amplio de Uruguai (1971).
Por motivos similares, a direita que perde as eleições segue muito poderosa e influente, bloqueando processos constitucionais e reformas estruturais.
Não admira que, nesses países, o pragmatismo centrista seja forte, enquanto o utopismo e o movimentismo são relativamente marginais.
Paradoxalmente, na contramão desta relativa moderação política dos processos, nesses países as condições macro e microeconômicas são (ao menos potencialmente) mais favoráveis à construção de um modelo econômico pós-neoliberal; e mesmo à construção do socialismo.
Mesmo considerando o esquematismo da descrição, a contradição que apontamos, entre condições subjetivas e objetivas, só encontra solução teórica e prática nos marcos de uma estratégia continental.
É por isto que o tema da integração é o principal divisor de águas no debate político da esquerda na ALC. A integração não garante um futuro socialista para cada um dos países de América Latina e Caribe. E nem toda integração é compatível com uma estratégia socialista. Mas na atual situação internacional,
para a maioria dos países de ALC, só a integração torna o socialismo (ou mesmo um desenvolvimento capitalista progressistaprogressista) uma alternativa realista.
para a maioria dos países de ALC, só a integração torna o socialismo (ou mesmo um desenvolvimento capitalista progressistaprogressista) uma alternativa realista.
Por isto, se quiser ampliar sua força sem perder o rumo, a esquerda latinoamericana e caribenha terá que dar mais atenção para o debate sobre o capitalismo do século XXI, para o balanço do socialismo do século XX, para a discussão estratégica. Que inclui equacionar a relação entre linha política, base social, partido, governo e Estado. E inclui, também, equacionar a relação entre transformação nacional e integração regional.
*Valter Pomar é membro do Diretório Nacional do PT e secretário executivo do Foro de São Paulo
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