quarta-feira, fevereiro 15, 2012

A anulação do centro histórico


A anulação do centro histórico

Incorporado por   PAULO BRABO


Moro no Brasil; isso quer dizer que as cidades que conheço crescem rápido demais para chegarem a ter alma. Moro no Brasil; isso quer dizer que muitas das cidades que conheço não têm centro histórico – e muitas vezes pelo motivo mais singelo de todos: são lugares jovens demais para chegarem a ter alguma verdadeira cumplicidade com o tempo.
Mas há outros motivos. Nas cidades mais antigas do Brasil, que poderiam encontrar na história uma identidade e um coração, o centro histórico encontra-se em geral em algum ponto entre dois polos – ou está [1] abandonado, em processo de desintegração e a caminho da completa obliteração, ou foi [2] transformado num espaço eminentemente turístico, reduto de bares, museus, espaços culturais, restaurantes de comida típica (entre aspas) e lojas de quinquilharias.
Numa palavra, encontramos um modo de fazer com que nossos centros históricos (e portanto nossas cidades, e portanto nós mesmos) deem as costas para a história. Quando não estamos providenciando para que a herança histórica de edifícios seja desmantelada e substituída pela novidade, tomamos providências para que a história que reste não tenha qualquer verdadeira relação com a nossa realidade. Transformar um centro histórico num centro turístico é a medida que tomamos para nos livrarmos dele; congelá-lo ali, privá-lo de uma função vital, equivale a selar o rompimento do momento presente com a história que nos precedeu. Fetichizar a história é negar qualquer continuidade com ela.
Garantem-me que na Europa – e posso dizê-lo pelo menos da Itália, que contemplou estes olhos assombrados – o centro histórico é uma coisa viva e ativa e vital; ele é parte integrante da cidade, da cultura corrente e da imaginação corrente das pessoas. Ali as pessoas vivem, fazem compras, fecham negócios, vendem e compram serviços. Os prédios desta rua tem pelo menos quinhentos anos, mas aqui em baixo há um banco, ali uma frutaria, aqui um alfaiate, ali uma loja de moda, aqui um açougue, ali uma casa de chá, aqui um teatro minúsculo, ali uma papelaria. Nos andares de cima as pessoas moram, roupas de camas são dobradas, almoços são feitos, adolescentes se cutucam no Facebook, gatos descansam nos parapeitos, aquecedores roncam, pães saem dos fornos, homens fazem a barba e mulheres se vestem para sair.
Num ambiente assim, a história não pode ser como entre nós fetichizada ou ignorada; ela é redimida e bebida e assimilada e é tornada indistinta do fluxo irresistível do presente. Nos bares as pessoas discutem em que área da cidade passavas as antigas muralhas, em que ponto da rua se ocultam rios subterrâneos, em que arcada semioculta da parede ameaça um templo cujas pedras são também as desta casa: a casa onde mora aquele advogado, onde mora o seu dentista, o pai do meu amigo, onde vive aquela moça que te apresentei e que toca violoncelo.
Uma cidade sem um centro histórico vivo é, para um cara como eu, uma cidade morta. Um corpo sem alma, se essa é a metáfora que você quer ouvir.
Meu problema é que o nosso desenvolvimentismo não requer apenas que as cidades cresçam obscenamente, sem sanidade e sem trégua; exige também que se os centros urbanos se tornem lugares absolutamente genéricos, utilitaristas, sem qualquer memória do espírito, da beleza e da fantasia – sem conhecerem e sem recordarem o abraço da história.

Twitter do Bacia das Almas >>> @saobrabo

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Moro no Brasil; isso quer dizer que as cidades que conheço crescem rápido demais para chegarem a ter alma. Moro no Brasil; isso quer dizer que muitas das cidades que conheço não têm centro histórico – e muitas vezes pelo motivo mais singelo de todos: são lugares jovens demais para chegarem a ter alguma verdadeira cumplicidade com o tempo.
Mas há outros motivos. Nas cidades mais antigas do Brasil, que poderiam encontrar na história uma identidade e um coração, o centro histórico encontra-se em geral em algum ponto entre dois polos – ou está [1] abandonado, em processo de desintegração e a caminho da completa obliteração, ou foi [2] transformado num espaço eminentemente turístico, reduto de bares, museus, espaços culturais, restaurantes de comida típica (entre aspas) e lojas de quinquilharias.
Numa palavra, encontramos um modo de fazer com que nossos centros históricos (e portanto nossas cidades, e portanto nós mesmos) deem as costas para a história. Quando não estamos providenciando para que a herança histórica de edifícios seja desmantelada e substituída pela novidade, tomamos providências para que a história que reste não tenha qualquer verdadeira relação com a nossa realidade. Transformar um centro histórico num centro turístico é a medida que tomamos para nos livrarmos dele; congelá-lo ali, privá-lo de uma função vital, equivale a selar o rompimento do momento presente com a história que nos precedeu. Fetichizar a história é negar qualquer continuidade com ela.
Garantem-me que na Europa – e posso dizê-lo pelo menos da Itália, que contemplou estes olhos assombrados – o centro histórico é uma coisa viva e ativa e vital; ele é parte integrante da cidade, da cultura corrente e da imaginação corrente das pessoas. Ali as pessoas vivem, fazem compras, fecham negócios, vendem e compram serviços. Os prédios desta rua tem pelo menos quinhentos anos, mas aqui em baixo há um banco, ali uma frutaria, aqui um alfaiate, ali uma loja de moda, aqui um açougue, ali uma casa de chá, aqui um teatro minúsculo, ali uma papelaria. Nos andares de cima as pessoas moram, roupas de camas são dobradas, almoços são feitos, adolescentes se cutucam no Facebook, gatos descansam nos parapeitos, aquecedores roncam, pães saem dos fornos, homens fazem a barba e mulheres se vestem para sair.
Num ambiente assim, a história não pode ser como entre nós fetichizada ou ignorada; ela é redimida e bebida e assimilada e é tornada indistinta do fluxo irresistível do presente. Nos bares as pessoas discutem em que área da cidade passavas as antigas muralhas, em que ponto da rua se ocultam rios subterrâneos, em que arcada semioculta da parede ameaça um templo cujas pedras são também as desta casa: a casa onde mora aquele advogado, onde mora o seu dentista, o pai do meu amigo, onde vive aquela moça que te apresentei e que toca violoncelo.
Uma cidade sem um centro histórico vivo é, para um cara como eu, uma cidade morta. Um corpo sem alma, se essa é a metáfora que você quer ouvir.
Meu problema é que o nosso desenvolvimentismo não requer apenas que as cidades cresçam obscenamente, sem sanidade e sem trégua; exige também que se os centros urbanos se tornem lugares absolutamente genéricos, utilitaristas, sem qualquer memória do espírito, da beleza e da fantasia – sem conhecerem e sem recordarem o abraço da história.

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