É o paradoxo das nossas vidas. Nunca tivemos tanta liberdade para moldar nossas vida do modo como queremos, mas nunca estivemos sujeitos a tantas pressões nos dizendo o que é desejável. David Rowan, The Times, 6 de setembro de 2003
Parece estar suficientemente demonstrado que, quando o ocidente abandonou a noção (antes bastante popular) de que a pobreza é uma virtude, foi com a ardente aprovação da Reforma Protestante – e provavelmente por direta inspiração dela. O que ainda não sabemos avaliar são todos os resultados que essa mudança de paradigma lançou futuro adentro. Algumas dessas flechas estão apenas começando a nos atingir; outras já nos atravessaram as pernas e o coração. Mesmo antes da era da mecanização, alguns observadores, avaliando essa formidável transição, olharam com nostalgia para o passado e com temor para o futuro. Hoje em dia discute-se se um mundo que não acredita em Deus irá manter-se abraçado à ética; naquela época discutia-se se um mundo que acredita na ambição e no lucro pode alegar estar abraçado a Deus. Quando a revolução industrial era menos do que uma promessa e a era da informação menos do que um sonho, esses sujeitos enxergavam o que hoje deveria ser visto como lugar-comum: que a ganância, liberta de suas cadeias ancestrais e alimentada pela tecnologia, poderia se mostrar a chave da destruição do mundo e da mais fatal cegueira da história da humanidade. Em seu A Vida de Fausto, de 1791, Friedrich Maximilian Klinger coloca na boca de Satã algumas dessas profecias:
Este é Novalis (1772-1801), escrevendo mais ou menos na mesma época, em seu A Cristandade, ou a Europa:
Acho especialmente relevante e lúcido que esses autores tenham entendido, de seu posto há duzentos anos atrás, de onde não tinham como saber o que hoje sabemos, que o segredo da vitória final da ganância residiria na manipulação das necessidades. Novalis enxergou que necessidades mais complexas requerem mais recursos e mais tempos para serem satisfeitas. O mero tempo necessário para aprendermos a nos tornar “produtivos” e a nos mantermos assim pode estar sequestrando partes muito legítimas da existência – porções e pausas de vida que perdemos inteiramente de vista enquanto corremos atrás do vento. Antes dos engarrafamentos e dos shopping centers, Novalis entreviu que a tarefa de nos tornarmos consumidores eficazes pode estar nos subtraindo o privilégio e a tarefa mais essencial de viver. Klinger olhou ainda mais longe, e na mesma página diz duas vezes que a chave da manipulação e da ruína da humanidade residirá na “criação de necessidades”. Antes da televisão de tela plana e do iPad, ele entendeu que o homem abraçará os pés do diabo para não ter de resistir ao apelo de “novas necessidades”. Essas profecias falam de um momento no futuro em que os homens finalmente dominariam a arte de transformar o que é supérfluo em necessidade. Essa hora, naturalmente, já chegou. Mais do que Novalis jamais poderia sonhar, aprendemos a validar nossa humanidade através daquilo que consumimos. E, numa vertigem que levaria Klinger à loucura, a subsistência dos sistemas do mundo absolutamente depende da criação e da divulgação insaciável de novas necessidades. Até mais ou menos recentemente, a durabilidade de um produto era encarada como valor: os produtos eram feitos e comprados para durar. Esse paradigma, no entanto, não funcionava a serviço de um capitalismo que depende do consumo sem pausa para sobreviver. As indústrias aprenderam não apenas a lançar novos produtos (coisa que fizeram desde o começo), mas a encaixá-los num rigoroso programa de obsolescência programada. Mesmo quando compradas para durar, as coisas passaram a ser feitas para não durar. Hoje em dia um produto apresenta falhas técnicas muito antes do que já foi considerado aceitável, e o custo do conserto e da manutenção se mostra muitas vezes maior do que o custo da aquisição de um produto novo. O verdadeiramente notável nessa equação é que aprendemos a deixar de ficar indignados com isso, devidamente aplacados pelas vantagens anunciadas do novo produto-necessidade. O último estágio da transição de valor do durável para o instantâneo ocorreu quando as indústrias deixaram de ocultar o seu projeto de obsolescência programada e passaram a anunciá-lo aos quatro ventos como evidência de compromisso com a inovação. Hoje não há quem compre um equipamento eletrônico desconhecendo que daqui a um dia ou dois, talvez antes, um equipamento com mais botões estará ocupando o mesmo lugar na estante. Não há quem compre um iPhone 4 sem saber que este ano ainda deve sair o 5. A perspectiva da obsolescência deixou de ser um problema e passou a ser um componente legítimo do produto, um de seus mais irresistíveis atrativos. E, como diz a piada, com esses dez por cento nós vamos vivendo. Os profetas continuam falando e sendo solenemente ignorados, porque ouvi-los seria morder a mão que nos alimenta – ou mais propriamente, seria deixar de morder a mão que estamos consumindo: a nossa própria. Ivan Illich explica além da dúvida que nos tornamos tão habituados às soluções da tecnologia que tornamo cegos ao fato de que estamos sendo aprisionados por elas. As soluções que deveriam tornar a vida mais fácil, bem como a obediente satisfação das necessidades novas e complexas que nos vende o sistema, pouco fizeram além de criar novos problemas, e crônicos. Entre eles estão as chamadas “doenças da opulência”, invenções do nosso sucesso em canalizar o nosso modo de vida de modo a perseguir a prosperidade – coisas como obesidade, depressão, ansiedade, hipertensão e diabetes. Essas novas doenças aplacamos com novos remédios, é claro, porque seria pedir demais que nos rebaixássemos a mudar de vida. Para que o sistema continue rodando, nada nem ninguém – nem nossa própria qualidade de vida nem o esgotamento dos recursos do mundo – deve ser considerado motivo legítimo para atrasarmos o relógio e voltarmos ao ritmo das meras necessidades, as antigas. Onde o supérfluo é visto como necessário, o próprio conceito de necessidade é sequestrado e esvaziado para sempre. Havia uma coisa importante que era necessário eu dizer para concluir, mas dizê-lo neste mundo não faz sentido. Fonte: Bacia das Almas |
quarta-feira, maio 18, 2011
As profecias do homem-consumo e o esvaziamento das necessidades.
quarta-feira, maio 18, 2011
As profecias do homem-consumo e o esvaziamento das necessidades.
É o paradoxo das nossas vidas. Nunca tivemos tanta liberdade para moldar nossas vida do modo como queremos, mas nunca estivemos sujeitos a tantas pressões nos dizendo o que é desejável. David Rowan, The Times, 6 de setembro de 2003
Parece estar suficientemente demonstrado que, quando o ocidente abandonou a noção (antes bastante popular) de que a pobreza é uma virtude, foi com a ardente aprovação da Reforma Protestante – e provavelmente por direta inspiração dela. O que ainda não sabemos avaliar são todos os resultados que essa mudança de paradigma lançou futuro adentro. Algumas dessas flechas estão apenas começando a nos atingir; outras já nos atravessaram as pernas e o coração. Mesmo antes da era da mecanização, alguns observadores, avaliando essa formidável transição, olharam com nostalgia para o passado e com temor para o futuro. Hoje em dia discute-se se um mundo que não acredita em Deus irá manter-se abraçado à ética; naquela época discutia-se se um mundo que acredita na ambição e no lucro pode alegar estar abraçado a Deus. Quando a revolução industrial era menos do que uma promessa e a era da informação menos do que um sonho, esses sujeitos enxergavam o que hoje deveria ser visto como lugar-comum: que a ganância, liberta de suas cadeias ancestrais e alimentada pela tecnologia, poderia se mostrar a chave da destruição do mundo e da mais fatal cegueira da história da humanidade. Em seu A Vida de Fausto, de 1791, Friedrich Maximilian Klinger coloca na boca de Satã algumas dessas profecias:
Este é Novalis (1772-1801), escrevendo mais ou menos na mesma época, em seu A Cristandade, ou a Europa:
Acho especialmente relevante e lúcido que esses autores tenham entendido, de seu posto há duzentos anos atrás, de onde não tinham como saber o que hoje sabemos, que o segredo da vitória final da ganância residiria na manipulação das necessidades. Novalis enxergou que necessidades mais complexas requerem mais recursos e mais tempos para serem satisfeitas. O mero tempo necessário para aprendermos a nos tornar “produtivos” e a nos mantermos assim pode estar sequestrando partes muito legítimas da existência – porções e pausas de vida que perdemos inteiramente de vista enquanto corremos atrás do vento. Antes dos engarrafamentos e dos shopping centers, Novalis entreviu que a tarefa de nos tornarmos consumidores eficazes pode estar nos subtraindo o privilégio e a tarefa mais essencial de viver. Klinger olhou ainda mais longe, e na mesma página diz duas vezes que a chave da manipulação e da ruína da humanidade residirá na “criação de necessidades”. Antes da televisão de tela plana e do iPad, ele entendeu que o homem abraçará os pés do diabo para não ter de resistir ao apelo de “novas necessidades”. Essas profecias falam de um momento no futuro em que os homens finalmente dominariam a arte de transformar o que é supérfluo em necessidade. Essa hora, naturalmente, já chegou. Mais do que Novalis jamais poderia sonhar, aprendemos a validar nossa humanidade através daquilo que consumimos. E, numa vertigem que levaria Klinger à loucura, a subsistência dos sistemas do mundo absolutamente depende da criação e da divulgação insaciável de novas necessidades. Até mais ou menos recentemente, a durabilidade de um produto era encarada como valor: os produtos eram feitos e comprados para durar. Esse paradigma, no entanto, não funcionava a serviço de um capitalismo que depende do consumo sem pausa para sobreviver. As indústrias aprenderam não apenas a lançar novos produtos (coisa que fizeram desde o começo), mas a encaixá-los num rigoroso programa de obsolescência programada. Mesmo quando compradas para durar, as coisas passaram a ser feitas para não durar. Hoje em dia um produto apresenta falhas técnicas muito antes do que já foi considerado aceitável, e o custo do conserto e da manutenção se mostra muitas vezes maior do que o custo da aquisição de um produto novo. O verdadeiramente notável nessa equação é que aprendemos a deixar de ficar indignados com isso, devidamente aplacados pelas vantagens anunciadas do novo produto-necessidade. O último estágio da transição de valor do durável para o instantâneo ocorreu quando as indústrias deixaram de ocultar o seu projeto de obsolescência programada e passaram a anunciá-lo aos quatro ventos como evidência de compromisso com a inovação. Hoje não há quem compre um equipamento eletrônico desconhecendo que daqui a um dia ou dois, talvez antes, um equipamento com mais botões estará ocupando o mesmo lugar na estante. Não há quem compre um iPhone 4 sem saber que este ano ainda deve sair o 5. A perspectiva da obsolescência deixou de ser um problema e passou a ser um componente legítimo do produto, um de seus mais irresistíveis atrativos. E, como diz a piada, com esses dez por cento nós vamos vivendo. Os profetas continuam falando e sendo solenemente ignorados, porque ouvi-los seria morder a mão que nos alimenta – ou mais propriamente, seria deixar de morder a mão que estamos consumindo: a nossa própria. Ivan Illich explica além da dúvida que nos tornamos tão habituados às soluções da tecnologia que tornamo cegos ao fato de que estamos sendo aprisionados por elas. As soluções que deveriam tornar a vida mais fácil, bem como a obediente satisfação das necessidades novas e complexas que nos vende o sistema, pouco fizeram além de criar novos problemas, e crônicos. Entre eles estão as chamadas “doenças da opulência”, invenções do nosso sucesso em canalizar o nosso modo de vida de modo a perseguir a prosperidade – coisas como obesidade, depressão, ansiedade, hipertensão e diabetes. Essas novas doenças aplacamos com novos remédios, é claro, porque seria pedir demais que nos rebaixássemos a mudar de vida. Para que o sistema continue rodando, nada nem ninguém – nem nossa própria qualidade de vida nem o esgotamento dos recursos do mundo – deve ser considerado motivo legítimo para atrasarmos o relógio e voltarmos ao ritmo das meras necessidades, as antigas. Onde o supérfluo é visto como necessário, o próprio conceito de necessidade é sequestrado e esvaziado para sempre. Havia uma coisa importante que era necessário eu dizer para concluir, mas dizê-lo neste mundo não faz sentido. Fonte: Bacia das Almas |
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