domingo, junho 27, 2010
Paradoxo
Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser,
penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós. Nem o
próprio filho de Deus salvou-se do paradoxo. Ele escolheu, para
nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se
converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu
europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje em
dia, o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha
expulsado do templo.
Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não
era russo Josef Stálin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos
alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Sarfatti,
a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. José Carlos
Mariátegui, o mais marxista dos marxistas latino-americanos,
acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado
completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino.
Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos
brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negros
norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a mais
livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote,
o mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quixote
nunca disse sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal
que cavalgamos.
"Acho que você está meio nervosa", diz o histérico. "Te odeio", diz a
apaixonada. "Não haverá desvalorização", diz, na véspera da
desvalorização, o ministro da Economia. "Os militares respeitam a
Constituição", diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da
Defesa.
Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados
Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista da
Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas
durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas,
abriam o caminho.
Eduardo Galeano, o Livro dos Abraços
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domingo, junho 27, 2010
Paradoxo
Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser,
penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós. Nem o
próprio filho de Deus salvou-se do paradoxo. Ele escolheu, para
nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se
converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu
europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje em
dia, o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha
expulsado do templo.
Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não
era russo Josef Stálin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos
alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Sarfatti,
a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. José Carlos
Mariátegui, o mais marxista dos marxistas latino-americanos,
acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado
completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino.
Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos
brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negros
norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a mais
livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote,
o mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quixote
nunca disse sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal
que cavalgamos.
"Acho que você está meio nervosa", diz o histérico. "Te odeio", diz a
apaixonada. "Não haverá desvalorização", diz, na véspera da
desvalorização, o ministro da Economia. "Os militares respeitam a
Constituição", diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da
Defesa.
Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados
Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista da
Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas
durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas,
abriam o caminho.
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